um nascimento elétrico (extrato de PAREM DE RESPIRAR, QUERO DORMIR!)

02-03-2016 00:04

CAPÍTULO 16

 

um nascimento elétrico

um bebé carregadinho de eletricidade estática

não aceito que a minha irmã respire

chamem a polícia, a minha mãe abandonou-me

 

 

O segundo parto de Amália, tal como a gravidez, não foi fácil. Ela esperou horas quase infinitas na maternidade, mas Lucas recusava-se terminantemente a abandonar as águas maternas. Procuraram induzi-lo a sair, mas ele permanecia renitente.

Monello não queria que houvesse cesariana, porque isso iria desfigurar a beleza da esposa, da qual ele se envaidecia muito.

Ao fim de vinte e quatro horas, quando já todos desesperavam, menos o pai, que continuava impassível, a encher o exterior da maternidade com o aroma do seu cachimbo, Lucas deu sinal de quebrar a teimosia e de disponibilizar-se para assomar ao mundo extravagante em que teria de viver. Porém, queria entrar com os pés na dianteira, talvez porque isso o deixasse mais seguro ou então, simplesmente, com o intuito de contrariar a vontade de quem o esperava.

Apenas trinta e seis horas depois do início das contrações é que lograram retirá-lo do interior da parturiente. A cabecinha cheia de cabelo negro emergiu, mas ele vinha enrodilhado no cordão umbilical. Estava quase estrangulado, roxo por causa da falta de oxigénio, mas rodaram-no e conseguiram que saísse.

Não foi necessário dar-lhe nenhuma palmada para que se expressasse fonicamente: mal se sentiu livre do cordão umbilical berrou com uma intensidade espantosa, consternando todos os presentes. Mas o que mais surpresa causou nos que assistiam foi o facto de a parteira que lhe pegou ao colo ter apanhado um choque elétrico, que quase levou a que o deixasse cair. Exagero ou não, a verdade é que todos disseram ter visto claramente a faísca.

— Este bebé está carregadinho de eletricidade estática! — Exclamou a parteira.

Amália recebeu a constatação sem qualquer surpresa, como se já soubesse há muito tempo que algo do género ia acontecer. A filha tinha vindo azucrinar-lhe os ouvidos com a enxurrada verbal, o filho prometia torrar-lhe a paciência com fenómenos ainda mais avassaladores.

Lucas, talvez por causa do episódio do cordão umbilical, nasceu com hipersensibilidade. Todos os sentidos pareciam ter sido insuflados com a dose máxima do excesso. Cresceu também com a tendência para medir a dureza das paredes com a testa, batendo intempestivamente nas superfícies verticais, sempre que a vida não lhe corria de boa feição. Para além de tudo isto, nutria uma fome hiperbólica de movimento, todo ele estava impregnado pelo desejo irresistível da motricidade global.

Há pessoas que não conseguem viver sem exercício físico regular, em doses elevadas, pois a atividade muscular permite-lhes equilibrar os níveis dos químicos do prazer. Se não correm ou não jogam o que quer que seja não estimulam a produção dos neurotransmissores e hormonas que as fazem ver a existência mais radiosa, colorida e justificada. Sem o exercício físico, caem facilmente no tédio e na depressão. Lucas tornar-se-ia uma dessas pessoas.

Era um bebé hirsuto, tinha o cabelo muito escuro, herdado do pai, e pelitos a irromper dos poros dos braços e das pernas. Estas seriam sempre arqueadas e musculosas.

Amália incomodou-se com a existência do filho desde o nascimento. Viu-o sempre como um obstáculo ao seu percurso, um espinho que, por causa das obrigações sociais, teria de suportar.

Ele não se aproximava do exagero verborreico da irmã, pelo contrário, era até pouco dado à fala, começou apenas a desenvolvê-la por volta dos dois anos e meio de idade. À sua volta, a voz de Gabriela inchava o ar, engalfinhando-se em todas as oportunidades que lhe surgiam. Na maior parte dos casos ele ignorava-a. De vez em quando batia-lhe e tentava morder-lhe, valendo à menina a vigilância apertada de Elisa.

As suas características sensoriais hipertrofiadas mantinham-se. Os cheiros e os sons eram os domínios em que esse exagero era mais notório e causava mais impacto e estranheza.

Por volta dos dois anos negava-se a entrar na maioria das lojas, cafés e outros locais semelhantes. Só mais tarde esclareceu a razão: recusava-se categoricamente a entrar por causa dos cheiros, que eram desmedidamente ampliados pelo seu cérebro, o qual funcionava um pouco como o das crianças de espectro autista. Não tinha, contudo, qualidades comunicacionais deficitárias, pelo contrário, desenvolveu uma sociabilidade muito boa com dezenas de amigos permanentes.

Quando decidia que não entrava num local, tornava-se praticamente inamovível, sendo necessário muito esforço e perseverança para o arrancar do sítio onde fincava os pés ou esperneava. Se persistiam em movê-lo contra a sua vontade, explodia no maior ataque de fúria que é possível imaginar numa criança: berrava estrondosamente, pontapeava tudo e todos, mordia e golpeava com a testa, que parecia ser feita do aço mais resistente, todas as superfícies que lhe ficavam ao alcance.

O escândalo social tornava-se insuportável para os adultos.

No que concerne à audição, a hiperestesia de Lucas era ainda mais acentuada. Os seus comportamentos reativos aos estímulos sonoros atingiam quase o nível do absurdo, poucos acreditavam ser possível que ele fosse mesmo assim. A maior parte julgava que se tratava apenas de excesso de imaginação e de amor pelas birras.

Lucas teve de deixar de dormir no mesmo quarto que a irmã, pois não aceitava que ela respirasse, visto que o barulho da respiração não lhe permitia adormecer. Uma vez tentou tapar-lhe a boca e quase a sufocou.

Era frequente ouvi-lo gritar:

— Parem de respirar, quero dormir!

Todas as noites, antes de se deitar, se comportava como um cão ou outro animal ainda mais excelente nas sensações olfativas. Investigava metodicamente os locais do seu quarto para verificar se existiam odores escondidos, à espera da melhor oportunidade para lhe agredirem as narinas. A cama era analisada em último lugar. Se ele descobria que alguém tinha estado ali, impregnando com as suas moléculas o cobertor, a dobra do lençol ou a almofada, era necessário mudar tais peças, e apenas podiam ser Elisa e a mãe a executar essa tarefa, pois eram as únicas cujos odores podiam ser suportados pelo seu nariz.

Cheirava sempre os alimentos antes de os comer. As bolachas, por exemplo, eram levadas até junto do nariz para a seleção das melhores. Não era entendível o critério que utilizava para distinguir a qualidade delas. Duas que parecessem exatamente iguais para o farejador comum podiam revelar, avaliadas pelo olfato apurado dele, diferenças abissais.

Detestava o pai, porque cheirava mal, segundo dizia. Repetia isso constantemente e não suportava a sua proximidade. Quando estava mais zangado berrava:

— Tu não és o meu pai! Cheiras mal!

Era, possivelmente, a mistura do odor entranhado do cachimbo e do perfume, de fragrância animal, que o progenitor carregava constantemente, que lhe causava tal negação extrema do amor filial. Isso contribuiu para que Monello passasse cada vez menos tempo em casa, preferia o convívio com os amigos e as explicandas do que com a esposa e os filhos.

Lucas adorava a mãe, embora essa afeição não fosse retribuída. Talvez o facto de ela se distanciar permanentemente o levasse a ampliar o desejo de a ter. Como este não se concretizava, começou a nutrir o receio de que ela o abandonasse. De vez em quando, nas ausências mais prolongadas da mãe, ia até à varanda e gritava a plenos pulmões:

— Chamem a polícia! Chamem os bombeiros! A minha mãe abandonou-me!