Um jardim vestido de casa - extrato de A ARITMÉTICA DO AMOR.

25-04-2014 01:28

 

 

Otília contou-lhe a história do rapaz que tinha uns pais muito cruéis e que nunca o deixavam sair de casa. Embora esta fosse enorme, mantinham-no fechado no quarto, os dias inteiros. O seu único contentamento era espreitar pela janela e observar um parque de árvores frondosas que se estendia do outro lado da rua.

Quando cresceu, o rapaz fugiu de casa e imigrou para o estrangeiro, para um país onde existiam grandes florestas com muitas e grandes árvores. Enriqueceu e, ao saber que os pais tinham morrido, resolveu regressar para cumprir um velho sonho que o acompanhava desde a adolescência.

Ao chegar tomou posse de todos os bens da família, por ser o único herdeiro. Sem perder tempo, contratou uma empresa de construção para remodelar a casa e um jardineiro.

O arquiteto da empresa quis saber em que consistia a remodelação e pediu o projeto.

- Não é necessário projeto – esclareceu o homem.

- Não podemos acrescentar nada sem um projeto aprovado.

- Não quero acrescentar nada, apenas desejo retirar coisas.

- Retirar o quê? – Perguntou o arquiteto, surpreendido.

- Tudo, exceto as paredes exteriores. Comecem pelo telhado e depois vão às paredes interiores. Quero tudo limpo. Arranquem também o soalho, até deixar a terra a descoberto.

O jardineiro também ficou surpreendido quando chegou, pois não percebeu qual podia ser a sua função. Não vislumbrou, em redor da casa, qualquer nesga de terra onde pudesse semear ou plantar o que quer que fosse. A norte e a sul do edifício, erguiam-se apenas as paredes de outros prédios, sem qualquer intervalo entre eles. A poente e a nascente estavam os pisos alcatroados das ruas. E então ele perguntou:

- Se a minha profissão é construir e manter jardins como é que posso ter aqui alguma utilidade, pois não vejo um único centímetro de terreno para me servir?

O homem olhou-o serenamente e convidou-o a entrar em casa. Deixou-o ficar algum tempo estupefacto com as ausências de divisões, de soalho e de telhado. Depois disse-lhe:

- Não quero ervas, plantas e flores lá fora mas sim cá dentro. Sempre foi esse o meu sonho. Traga árvores, flores e relva, construa os canteiros mais belos que souber dentro destas quatro paredes. Sou rico, gaste quanto quiser.

Um pouco inseguro, o Jardineiro começou a trabalhar. À medida que ia progredindo ganhava maior confiança e tornava o jardim mais exuberante. A sua criatividade parecia acelerar com a passagem do tempo. A obra foi interiorizada por ele como se fosse o seu legítimo proprietário.

Quando terminou, chamou o dono e perguntou-lhe se estava satisfeito. O outro não disse nada mas a expressão com que olhava era suficiente para mostrar o seu contentamento.

- Agora que tem um jardim dentro de casa diga-me se vai morar longe daqui e quantas vezes por semana tenciona visitar isto – perguntou o jardineiro.

- Esta é que vai ser a minha morada – respondeu o homem, perante a estranheza do outro.

No dia seguinte, foi para lá viver. Subiu as escadas exteriores, com cinco degraus de granito, até ao patamar da entrada, afrontando com indiferença o pasmo das centenas de olhos que o seguiam do meio da praça central de vila, que ficava em frente da casa. No patamar, ficou alguns minutos estacado, olhando através dos vidros para a frondosidade interior.

Então abriu a boca e respirou tão fundo que matou a tristeza que se tinha fundido com ele desde a infância. Pela primeira vez sentiu-se poderoso e livre, capaz de ter aquilo que mais ninguém possuía ou desejava. As almas cruéis dos pais, que ainda vagueavam por ali, sentiram a sua energia e abandonaram a casa.

Abriu a porta e entrou diretamente no jardim. Espalhou a roupa pelos ramos das árvores, tomou banho nos repuxos e deitou-se na relva. Cruzou os dedos das mãos por baixo da cabeça e ficou a admirar o sol a mover-se no redondo do céu. Sentiu pressa de que nascesse a lua e lhe trouxesse a sua luz de seara madura.

Levantou-se, foi uma das grandes janelas e olhou para o aglomerado das casas que se estendiam até perder de vista. Abstraiu-se dos curiosos que o espreitavam da praça, assombrados com a sua excentricidade. E murmurou para si próprio:

- Estou no centro do meu sonho, na casa do meu jardim. Virei o mundo ao contrário.

E então viajou até à infância e, com o gume da confiança, abriu um buraco na parede da casa em que os seus pais o fechavam e saiu para brincar com as árvores. E nunca mais teve tristeza, medo e solidão.