Que faço eu aqui se tudo fica igual
Dizem que o Menino Jesus nutria grande saudade dos tempos que já tinha conhecido mas que não pertenciam a nenhuma memória — nem à da sua mãe, nem à do carpinteiro, nem à de ninguém que pudesse existir naquele local humilde onde vivia, nem à de todos os que habitavam o império romano, nem a qualquer uma que estivesse no cérebro de fosse qual fosse a criatura deste mundo — porque o Menino Jesus lembrava-se do que ia acontecer pelos séculos todos, pois já lá tinha estado.
Prometia, muitas vezes, que não iria permitir pias de água benta, pois recordava as inúmeras pandemias que se alimentavam das mãos húmidas dos crentes e dos beijos nos crucifixos e dos dedos dos padres nas hóstias e nos lábios.
Não, não iria permitir que os padres matassem gente, queimassem os mais sábios, afirmassem coisas fora de tempo, acumulassem riquezas de todo o género, fizessem filhos sem amor, queimassem jovens ruivas de olhos verdes e tentassem eliminar as criaturas humanas demasiado hirsutas devido à hipertricose lanuginosa — Jesus sabia até que os lobisomens seriam uma invenção dos franceses.
Não queria que, nesses tempos que já conhecera, os missionários pensassem que catequizavam animais para lhes dar alma, pois alma todos tinham, até os próprios animais e as pedras e tudo o resto, porque Deus, que era e não era seu pai, nunca quisera que houvesse coisas sem alma.
O Menino Jesus pensava muito nisto, absolutamente dividido entre um adulto que vivera o tempo todo e uma criança que ria e brincava e se esquecia depressa das coisas. E na contradição de ser tudo isto, nascia-lhe às vezes uma birra, por não entender bem o seu papel no mundo. Como podia ele evitar, cumprindo o desígnio dos outros dois familiares eternos, que eram ele próprio e não eram, aquilo que já tinha acontecido e de que se lembrava tão bem, por ter estado lá e chorado? Nesses momentos, sentia-se mais íntimo do carpinteiro, ia fazer-lhe companhia na oficina, rebolava nas fitas saídas da plaina de lâmina ferrugenta — que já era instrumento, embora muitos digam que não —, amassava serrim e criava figuras cheias de alma, porque não queria nada inanimado, mas pedia-lhes que ficassem quietas, a fingir que estavam sem vida. Porém, como criança que era, às vezes esquecia-se de lhes dizer para fazerem de conta. Certa vez modelou um dinossáurio carnívoro, mas saiu à pressa da oficina e então o animal cresceu e invadiu as ruas de Nazaré, aterrorizando tudo e todos, até que o Menino Jesus o fez recuar para o Jurássico, limpou as memórias dos amedrontados e consertou os estragos.
— Jesus! — Exclamou o carpinteiro. — Como podes ser filho de Deus e fazer coisas destas?!
— Sou criança, pai.
Às vezes o carpinteiro levava-o à sinagoga, para ouvir os bons ensinamentos, mas Jesus nunca ia de boa vontade, sabia o que as escolas se iam tornar e revoltava-se, pois iam transformar-se em locais de tortura, de domesticação de crianças e adolescentes, de presunção e de domínio, de mordaça da curiosidade, de submissão e desprezo, de promoção da cretinice e do sentimento de inferioridade…
— Vós não sabeis nada! — Dizia ele, zangado.
Os anciãos mestres da lei não o levavam a sério, mas admiravam a sua ousadia, riam-se e chamavam a atenção ao carpinteiro.
Quando tinha nove anos, o menino fartou-se de brincar com os restos da madeira e com a cola, enjoou-se até de fazer companhia ao pai e começou a ter saudades mais intensas do futuro. Mostrou uma cara triste à Virgem sua mãe — tão triste que ela se comoveu e lhe perguntou a razão de estar assim.
— Quero ter um tablet — respondeu.
A mãe, como era habitual, ficou perdida, pois não possuía a menor noção do que fosse um computador avançado, em formato de tela, uma simples película dobrável capaz de fazer explodir o entusiasmo das crianças.
— Pois, não sabes e nunca vais saber — disse Jesus.
Logo se arrependeu, pois pensou, na sua divina sabedoria, que estava a desrespeitar a progenitora. Encheu-se de paciência e descreveu, da maneira mais perfeita, que era a que sempre utilizava, o que era aquele objeto.
— Não podes pedir ao teu pai que te faça um, em madeira? — Perguntou ela.
O menino lembrou-se de que já sabia o que se estava a passar, já presenciara aquele evento.
— Ele não percebe o que é. Eu é que vou fazer um. Mas depois vai faltar-me a net. Só vai existir daqui a dois mil anos.
— Dois mil anos, Jesus? O mundo vai durar tanto?
— Até vai durar um pouco mais. Neste tempo de que falo, os meninos passam o tempo a jogar e a enviar mensagens e a ver vídeos… Bem, não interessa.
Como era normal, Jesus perdeu rapidamente o interesse pela admiração da mãe. Foi para a oficina, juntou os restos de madeira do carpinteiro e fez um tablet muito evoluído, novinho em folha e com uma wireless tão potente que apanhava as ondas emitidas no futuro. Teve então a ideia de o mostrar às outras crianças.
Foi nesse momento que o Pai, por meio do Espírito, que veio rapidamente na forma de uma pomba luminosa, estilhaçou o entusiasmo do menino.
— Que fazes, Jesus?! Destrói já esse brinquedo e apaga a memória das crianças. Não sabes que o pior de todos os problemas é misturar o futuro com o presente? Todo o pecado e toda a morte nascem de um presente tão ambicioso que quer roubar o futuro, mas ao roubá-lo aniquila-o e, destruindo-o, morre também ele.
O menino, obediente, fez o que a ave lhe ordenou. Mas quando ela levantou voo e desapareceu ele, pesaroso, lamentou-se à sua solidão.
— Afinal, que faço eu aqui, se tenho de deixar tudo como está?