Padecimentos de uma Virgem (excerto)
Os músicos da banda esperavam no coreto, com os instrumentos na mão e a pauta pronta, mal acabasse a missa irromperiam naqueles magníficos acordes em que os seus metais roufenhos eram pródigos, estavam dispostos a travar com os altifalantes uma luta sem tréguas, um combate de morte onde o génio e a boa vontade dos executantes levariam forçosamente a melhor sobre as habilidades técnicas do Estrocegado, o Quim do Brioso era partidário dos altifalantes, os homens de meia-idade gostavam mais da banda, o padre continuava o sermão, perguntando aos fiéis se se lembravam daquele doente que tinha chegado junto da Virgem com chagas maiores do que punhos e fora curado, toda a gente se lembrava menos a Senhora dos Remédios, que investigou a memória e não encontrou nada que se parecesse com tal facto, "Devem estar a brincar" pensou Ela, porque o seu admirável coração era incapaz de pensar outras coisas, e depois observou o que ocorria à sua volta, o fotógrafo bichanava às mães dos anjinhos que era muito boa ideia terem uma fotografia de recordação, as mães ficavam nervosas, pois tinham que ter um ouvido atento à prédica e outro concentrado no fotógrafo, a Elisa perguntava se o Amadeu ficaria bonito, "Como um santinho" afirmava o artista, e o Amadeu, que já tinha perdido metade das ferramentas de S. José e não queria ser santinho, recomeçou a berrar, "Chiu!" fazia o povo, e o Amadeu nunca mais parava de gritar, a Sarna apregoava os seus voluptuosos doces e rosquilhos, que eram a alegria das gargantas e o companheiro ideal do vinho, enfim, eram ótimos substitutos do maná, o Albino da Angélica fazia saber à Justina das Portas que a Celeste tinha sido muito má rapariga, até gastara dinheiro num retrato, que estava pendurado na parede da sala, o Bino da Rola estacara em frente do coreto a olhar a banda, olhava-a com ar pasmado, de vez em quando parecia ganhar vida e pedia ao maestro que tocasse um vira, "Chiu!" ordenava o povo, e o maestro dizia que só tocava grande música, Mozart, Schubert, Philip de Sousa, "Toque uma conhecida" pedia o Bino, o Reitor de Santa Maria contava aquele milagre em que a Virgem acabara com a guerra quando uma moça lhe pedira que livrasse o seu namorado da batalha, "isto é que é um pregador!" exclamava o Espinhela, anuindo com a cabeça, e as velhas fungavam, a Nelinha levou o irmão junto dos andores, tirou-lhe as parecenças com o S. José e confiou-lhe que já tinha visto muitas vezes a Senhora dos Remédios, principalmente à noite, o irmão escutava-a abalado pelos estampidos da sua tosse, o António da Pita, marido da Catarina, estava fora do adro, retorcendo a sua enorme bigodaça e contando aos rapazes as espantosas memórias da Argentina, a mulher espreitava-o da janela da sua nova casa, espreitava-o sem amor, sem ódio, sem tristeza, no fundo dos seus olhos trémulos não se vislumbrava qualquer sentimento a não ser, talvez, aquela enorme sede de beijinhos, a Senhora dos Remédios voltou a olhar todos os seus companheiros mágicos de procissão, uma vez por ano percorria com eles aquele lastimável caminho que conduzia da igreja à capela, olhou-os em cima dos andores, rodeados de flores de plástico e dissecados pelos olhares dos crentes, também eles estavam compenetrados nas suas poses santas, o Francisco era o que mais se parecia com o seu Emanuel, tinha um olho triste focado no povo e o outro focado nas sandálias gastas e pelos seus lábios semicerrados deslizavam mil preces redentoras, era o único ente, de todos os que se mostravam aos seus imaculados olhos, a despertar-lhe alguma ternura maternal, mais além estava a Senhora de Fátima, ainda hoje a Virgem não percebia donde aparecera ela e como se tinha sabido insinuar às mentes imaginosas das multidões, como era possível afirmar que aquela mulher seráfica, que andava a trepar às árvores como a canalha, tinha gerado o Filho d'Ela? Tantos sacrifícios passara e tanta dor e tanto desrespeito, pensou a Senhora dos Remédios, para agora chegar aquela aventureira e usurpar-lhe metade do seu ventre.
Ao meio-dia e meia hora o Reitor Novo comandou as raparigas do coro em mais um cântico e depois encerrou a missa.
O chefe da banda não perdeu tempo, colocou os músicos em posição de assopro e arrancou a esbracejar, os metais gemeram, os bombos tossiram, as caixas gargalharam, os pratos espirraram e os ferrinhos tiniram, tudo numa magnífica execução que invadiu as orelhas do Bino da Rola, ficou maravilhado com tanta harmonia e tanta melodia e tanto ritmo, quem não gostou foi o Estrocegado, "Eles querem guerra!" gritou para os filhos, e correu a pôr um disco na maravilhosa aparelhagem, rodou o botão para o lado da altura, o som pisgou-se do gira-discos, passou pelo amplificador, fugiu desesperadamente pelos fios, saiu disparado pelos altifalantes, atropelou o som da banda que mal acabara de se erguer solenemente sobre a poeira do adro, arte e técnica engalfinharam-se, perseguiram-se nos ares, o maestro enfiou por uma marcha militar, esbracejando cada vez mais, o Estrocegado punha folclore, o Hilário aumentou a confusão, estoirando mais meia dúzia de foguetes, alguns pássaros juraram que não voltariam a pôr os pés naquela terra, o povo não sabia que partido tomar, depois dividiu-se, uns queriam ouvir o génio da banda outros só tinham orelhas para o folclore, que era muito bonito, uma mulher esganiçava-se tanto que até parecia incrível que não lhe saíssem os pulmões pela boca, aquilo é que era cantar! o Quim do Brioso dançava, esquecido das proibições do Reitor Velho, o Abílio acompanhava, a tocar concertina, as raparigas cantavam, tudo parecia indicar que a técnica seria a vencedora, mas o maestro não desistia, já tinha os braços desarticulados e os cabelos empapados e a cara enviesada, "Mais força, mais força" gritava ele para os executantes, mas estes não podiam mais, já tinham os sons todos trocados, os trombones pareciam clarinetes, uma trompa estava armada em oboé, uma flauta tocava ferrinhos e um saxofone arremedava um bombo, estava tudo confuso, já ninguém via a pauta e muito poucos ligavam ao maestro, metade da banda já tocava um requiem enquanto a outra metade continuava a marcha, o Hilário, que andava rodeado por insetos curiosos com a sua roda-viva, deu uma palmada na careca e descobriu que aquilo não podia ser, a banda tinha que tocar, pois os músicos haviam pedido dez contos e não se pode dar dez contos a quem não faz nada, "Parem os altifalantes" ordenou ele ao Estrocegado, e este fez-lhe a vontade, de repente o som da banda ficou sozinho no recinto e apenas então foi percebida a anarquia em que tinha caído o génio dos executantes, a harmonia era tão deprimente que as crianças começaram a chorar, o José da Tenenta explicava que aquilo era música nova, mas o Zé da Couta assegurava-lhe que não, que aquilo era um enxame de abelhas que queria pousar na careca do Hilário.