O ILUMINADOR DE CARACÓIS
12.
o iluminador de caracóis
um deus que se transforma em lua
experiências de cemitério
as aparências de um príncipe
insaciáveis comedores de salsa
um jardim de conchas luminescentes
Alguns povos antigos relacionaram a lua com a natureza do caracol. Tal como este, o satélite da Terra está cheio de oposições, começando pelo modo como influencia o fluxo da vida e da morte. A forma espiralada da concha do gastrópode representa o tempo, na sua voragem interminável, e a renovação permanente da existência.
Da perspetiva da lua, o caracol começa por ser uma criatura rasteira, demasiado terrena, que se esconde entre as plantas. Depois, torna-se um ser luminoso, companheiro da claridade noturna. Mas a sua luz é emprestada, como a do satélite, transmitida por este ao recebê-la do sol.
Para os Astecas, o gastrópode era a encarnação dos quatro elementos: a vida hermafrodita na terra e na água, o fogo da morte, o renascimento e, por fim, a energia lunar da fertilidade regulada pelas quatro fases da aparência do astro. Afirmavam até que era o deus mais rico de todos, porque era dono do tempo, da renovação vital, da reflexão e dos ornamentos e que se propôs para ser o astro-rei, o sol da humanidade. Contudo, depois de se tornar incandescente, não conseguiu andar com o ritmo adequado e irritou os outros deuses, que o açoitaram com um coelho. Foi assim que ele perdeu a intensidade do fogo, ganhou manchas na concha e se transformou em lua.
Há quem pense que o satélite da Terra gosta de usar a sua concha espiralada e invisível para agitar as ondas e os ventos e jogar às dinâmicas dos turbilhões. As forças destrutivas do molusco lunar agitam os mares e os continentes, produzem raios e centelhas de vida. Nada escapa ao seu poder devastador mas, do seu vórtice, irrompe a luz criadora da sexualidade andrógina.
Augusto detestava caracóis. Em primeiro lugar, era incapaz de os comer, tinha vómitos só de pensar em tal coisa, em imaginar a sensação daqueles corpos moles e babosos a escorregar-lhe pela garganta. Em segundo, odiava o som que produziam, quando eram pisados, um ruído dissonante, totalmente desequilibrado, que misturava as sensações contraditórias de casca dura e de massa pastosa. Em terceiro, constituíam uma praga que devorava, literalmente, as plantas florais e as ervas aromáticas do jardim.
Viveu até aos doze anos no Minho, uma zona onde os bichos vagarosos e babentos eram culturalmente desprezados. Costumava observá-los, a uma distância razoável, nas pequenas cercaduras que ladeavam algumas campas, no cemitério. Ficava a vê-los, enquanto a avó, com quem morava, fazia a reza semanal pelos familiares mortos e compunha os arranjos florais. Por isso, aprendeu a relacioná-los com a morte.
Quando, aos doze anos, veio morar nos arredores de Lisboa, deixou de os ver e esqueceu-se da sua existência. A ausência de vegetais em redor dos blocos de betão não era propícia à vida dos moluscos. No entanto, algum tempo depois um livro escolar fez com que os trouxesse de novo à memória, com uma informação que o deixou perplexo. Nesse manual era afirmado, na página sessenta e cinco, que estas criaturas, além de muitas características específicas, têm uma que lhe pareceu pouco digna: são hermafroditas. Com os olhos arregalados de espanto, leu que tal significa que possuem os dois sexos, isto é, são, ao mesmo tempo, femininos e masculinos, machos e fêmeas. Embora naquele momento não compreendesse, totalmente, as implicações que a natureza dos caracóis podia ter para a compreensão de outras espécies e de alguns casos incomuns na própria humanidade, esta informação escolar acentuou, nele, o preconceito em relação aos bichinhos babosos e cascudos, que parecem ter o tempo todo por conta deles e nunca manifestam a mínima intenção de chegar depressa a qualquer sítio.
Durante muito tempo, a ideia do hermafroditismo assaltava-lhe ciclicamente a cabeça. Decidiu, então, dirigir-se à biblioteca municipal e consultar tudo o que encontrasse sobre o estranho caso do sexo do caracol.
A biblioteca ficava situada num parque de grandes dimensões, com árvores frondosas, cursos de água e jardins. O edifício, um palacete, fora construído no início do século vinte, em estilo neoclássico, com vários torreões, que faziam lembrar contos de fadas. No salão enorme, aberto ao público, as estantes cresciam até ao teto, a uma altura imponente para um rapaz de treze anos. As mesas, robustas e polidas, compunham um clima solene que, associado ao silêncio, rigorosamente exigido, tornava o ambiente sagrado.
Foi no grande salão da biblioteca municipal que o Augusto leu a história do primeiro caracol, a origem de todos os bichinhos insignificantes e de pé baboso que deslizam, vagarosamente, por tudo quanto é sítio, deixando atrás de si um rasto inconfundível.
Há muito tempo, leu ele na história, existiu um homem de natureza lastimável, que escondia a sua maldade com tal mestria que todos os que o conheciam o consideravam cheio de virtudes. Aparentava ter, ao mesmo tempo, os raros dotes da jovialidade, da sensatez, da inteligência e da honestidade. Desenvolvera tanto a arte da dissimulação, que podia facilmente desencadear a maior intriga sem que os outros fossem capazes da mínima suspeita sobre a sua responsabilidade.
Era o mais novo de seis irmãos, quatro rapazes e duas raparigas. O pai era o rei daquela terra e mandava o costume que o filho mais velho, independentemente do sexo, herdasse o trono.
Aos vinte anos, Karac, assim se chamava o príncipe, jurou a si mesmo que havia de ser coroado rei e construir um palácio no local mais alto do reino, assente em alicerces de ouro, para que a terra não o corrompesse.
Acirrado pela ambição, gizou um plano para se ver livre dos outros irmãos.
Convidou o mais velho para ir à caça e conseguiu fazê-lo entrar numa gruta, onde estava um grande urso, que o matou.
Convenceu o segundo irmão a fazer uma corrida a cavalo e guiou-o até um precipício escondido, onde ele se despenhou e morreu.
Levou a irmã seguinte a passear até à fronteira do reino para os assaltarem e a matarem. No regresso, convenceu o pai de que os responsáveis tinham sido os soldados do reino vizinho. O pai, enganado, mandou o filho seguinte comandar o exército e invadir esse país, para punir os responsáveis. Porém, Karac avisou o monarca desse reino e informou-o de qual era o melhor local para fazer a emboscada e matar o irmão. E ele assim fez.
Para a sua elevação a herdeiro legítimo e único faltava apenas eliminar a madrasta, com quem o pai casara depois da morte da mãe, e a última irmã. Envenenou esta, colocou o frasco do veneno no quarto da madrasta e convenceu o rei de que fora ela a cometer o ato ignóbil, porque tencionava ficar com o trono. O rei, acreditando nele, mandou prender e matar a madrasta.
Passado algum tempo o rei refletiu e a dúvida instalou-se no seu coração. Mandou chamar, à sua presença, o irmão da madrasta e general do reino, para saber se este possuía alguma informação sobre o que de facto acontecera. O general disse-lhe que tinha a certeza de que Karac fora o responsável pela morte de todos os familiares. Este, que estava escondido atrás de uma cortina, apareceu de repente, matou o irmão da madrasta e feriu mortalmente o pai. E disse-lhe:
— Fui eu que matei os meus irmãos e agora vou eliminar-te também. Direi que foi este, para vingar a irmã. Herdarei a tua coroa e o teu reino e construirei o meu castelo com alicerces de ouro, para que não seja corroído pela terra.
O rei, ao descobrir a natureza malévola do filho, juntou as mãos em oração e disse-lhe:
— Não me mates já. Deixa-me fazer um pedido a Deus, para que te perdoe e te oriente.
O filho deixou-o rezar, enquanto se esvaía. Depois, chamou os guardas do palácio, proclamou-se rei e mandou matar todos os familiares da madrasta. Todavia, nessa noite, quando se preparava para dormir, Deus apareceu e disse-lhe:
— O teu pai, que sempre foi um bom rei, pediu-me, ao morrer, que revelasse a tua verdadeira natureza. Quiseste substituir os teus irmãos e as tuas irmãs, por isso te transformo em macho e fêmea. Não terás um palácio sobre alicerces de ouro mas sim uma casa que terás de transportar sobre ti, porque te consideras mais valioso do que o ouro. Não poderás dissimular-te, por isso deixarás atrás de ti um rasto inconfundível. Ficarás duro na aparência e frágil no interior. Serás do tamanho da tua alma e todos te desprezarão e à tua descendência.
Na manhã seguinte, quando os criados foram acordar o novo rei, não encontraram vestígios dele. Um dos servos reparou numa pequena criatura desconhecida, que se arrastava penosamente na direção da janela, talvez à procura do sol. Mas esqueceu-a logo, porque era necessário procurar o rei.
Augusto leu várias vezes a história e admirou as ilustrações. Mas, por mais coisas que lesse, não conseguia entender a questão do hermafroditismo. Observou os caracóis no parque, onde eram abundantes. Tentou analisar-lhes a anatomia, segurando-os com sacos plásticos a envolver-lhe as mãos. Porém, durante muito tempo não progrediu neste conhecimento.
O que ele nunca esperou foi que os descendentes de Karac fossem objeto de culinária e estimulassem os sabores da gulodice humana. Descobriu tal coisa aos treze anos. Um tio levou-o a uma esplanada, onde conviveu com um grupo de amigos, para beber cerveja e comer diversos petiscos. Pela mesa foram passando moelas, salada de polvo, camarões e, para agoniar as entranhas de um rapaz do norte, caracóis. Nem queria acreditar que entre os melhores petiscos daquela casa estivessem os bichinhos desprezíveis e nojentos que ele associava à morte e ao sabor da terra.
— Come, rapaz! – Diziam-lhe. – Lá no sítio onde nasceste não sabem o que é bom.
Retiravam o corpo mole com um palito e comiam-no como se estivessem a saborear algo infinitamente oposto ao corpo peganhoso. Por mais que o Augusto assistisse a estes petiscos, nunca deixou de sentir uma repulsa incontrolável, vinda das internalidades da infância. Aprendeu a conviver com estas situações, desviando o olhar sempre que era acometido por um impulso de vómito. Nunca conseguiu ingeri-los.
Augusto viajou pela adolescência e pelo início da juventude cheio de solidão. Não por ausência de convívio, mas apenas por sentimento. A sua competência social era boa. Quase todos o consideravam simpático, inteligente, honesto e divertido. Qualquer coisa nele parecia indicar aos outros que podiam confiar. Todavia, tal como o caracol, também ele vivia numa profunda contradição. O molusco concretiza a sua existência num império de oposições. O dualismo parece, por desígnio de Deus ou capricho natural, assentar-lhe na perfeição. A dureza exterior, calcária, contradiz o corpo mole, interior. É seco e húmido, masculino e feminino. É lento mas possui a aparência espiralada do tempo na sua constante transformação e retorno. Até na perceção do seu esmagamento se destaca a sua natureza antagónica. Já todos a experimentámos quando, ao anoitecer, não nos apercebendo que a lenta criatura se arrasta pelo pavimento, sentimos o quebrar da casca rija e, quase em simultâneo, a sensação de que pisámos algo mole e escorregadio. Desagrada-nos perceber que os bocados de concha se afundam na moleza do corpo.
Embora detestasse caracóis, Augusto tinha índole semelhante. Queria ser um citadino mas não gostava da cidade. Amava a ideia de campo mas não conseguia permanecer na ruralidade mais do que meia dúzia de dias. Quanto às interações sociais, embora parecessem excelentes, ficavam reduzidas, na verdade, devido à sua timidez, a puro sacrifício. Quanto maior o número de pessoas à sua volta maior se tornava a sensação de que, entre vozes e risos, crescia a solidão. Um sentimento de perda de tempo acompanhava-o constantemente.
Aos trinta anos, comprou uma pequena moradia num local sossegado. Nas traseiras, a norte, desfrutava de uma vista panorâmica sobre a Serra de Sintra. As janelas do primeiro andar pareciam postais ilustrados, onde cabia a serra toda. Via a extensão montanhosa da vertente sul, desde a Peninha ao Palácio da Pena. Também a norte, a casa tinha um pequeno jardim, de cento e cinquenta metros quadrados. Estava completamente desmazelado, quando tomou posse da casa. Resumia-se a terra seca, ervas daninhas e várias covas deixadas pelo cão dos antigos donos.
Augusto começou por colocar bolbos no solo, nas margens do terreno, deixando a parte central para um tapete de relva. Gladíolos gigantes, narcisos, jacintos, frésias, dálias… Estas últimas permaneciam intensas na memória da infância, com as folhas brancas e macias e um odor inconfundível. Eram de várias cores, entre elas o vermelho, o amarelo, o branco, o laranja e os tons matizados de vermelho e branco. Mais tarde, Augusto lembrou-se de que gostava dos odores combinados das dálias e da hortelã. Fez crescer a menta entre a macieza das flores dos Astecas.
Augusto interessava-se pela culinária. Via-a como uma atividade criativa, que estimulava o prazer da descoberta. Cozinhar era uma construção de sabores, aromas, cores, sons e texturas. Tinha o hábito de dizer que era a verdadeira arte de todos os sentidos e, especialmente, da pele. Ora, um bom cozinheiro tem de usar salsa e a melhor é a que se apanha do próprio canteiro. Por isso, ele semeou-a com dedicação e viu-a emergir da terra com indisfarçável contentamento. Mas o prazer foi efémero porque os caracóis, reconhecidos apreciadores de salsa, sentiram o canteiro, deslizaram até ele, babaram-no e apropriaram-se das folhas e dos talos, reduzindo-o a uma visão desoladora que semeava mágoas no dono. Ele assistiu, impotente, à contínua investida dos gastrópodes, que aproveitavam as humidades trazidas pelo anoitecer para se empanturrarem com a herbácea. De onde lhes nasceria aquela motivação para a planta? É verdade que o organismo humano pode beneficiar muito com o seu consumo. Ao que se conhece, cem gramas desta erva aromática são suficientes para atafulharem o corpo com ferro e vitaminas A, B, C e K, esta última com uma dose quinze vezes superior à recomendada diariamente. Dizem que um copo de chá por dia limpa o sal dos rins melhor do que qualquer medicamento. Prolifera, sem dúvida, uma multidão de apologistas do uso deste vegetal com fins terapêuticos e depurativos, para além dos culinários, mas em proporção com o tamanho, os moluscos peganhentos mostravam-se ainda mais fanáticos e vorazes do que os apreciadores humanos.
Augusto teve a tentação de colocar veneno à roda do canteiro, mas foi atacado pela compaixão. Depois pensou em como seria fácil destruí-los debaixo da sola dos sapatos. Porém, não conseguindo esmagá-los tentou encontrar uma forma de os afastar que não lhe perturbasse o coração. Com uma paciência impressionante, procurava os caracóis escondidos, apanhava-os, ia até ao muro do fundo do jardim e atirava-os, por cima da vedação, para o pinhal que se estendia a partir do limite norte do quintal. No fim do dia calculou que tinha atirado quatrocentos e vinte e oito caracóis. Alisou cuidadosamente o canteiro e semeou, de novo, salsa.
O que ele nunca esperou foi que as figuras lentas e insignificantes, que pareciam não ter qualquer sentido de orientação à distância, conseguissem encontrar de novo o caminho para o jardim e arrastar-se teimosamente na direção das folhas da salsa e das outras plantas. Noite após noite retornavam aos canteiros, vindos do pinhal, depois de terem sido arremessados, em dias anteriores, por cima da sebe de madressilvas.
Todas as tardes, depois de regressar do trabalho, Augusto dedicava-se à procura metódica e exaustiva dos comedores de folhas, os vândalos das sementeiras. No entanto, não conseguia suster a sua caminhada de retorno, especialmente à noite, quando a densidade da noite caía e cegava os olhos.
Para ver melhor o que acontecia comprou dois holofotes com lâmpadas de trezentos watts. Resolveu fazer um estudo sistemático sobre os percursos dos invasores e sobre as horas de maior atividade. De hora a hora ligava os holofotes, saía ao jardim, contava os que eram visíveis e apontava as principais direções por eles seguidas. Não encontrou, na sua inteligência, qualquer modelo que permitisse prever o comportamento dos bichos. Na verdade, pareciam surgir aleatoriamente, de todas as direções. As paredes brancas dos muros mostravam-nos a progredir, como um exército sem líder, numa distribuição de aparência caótica. Constituíam uma horda faminta e implacável em movimento.
Resolveu então, em desespero, usar algum veneno granulado da Bayer. Espalhou-o cuidadosamente em redor dos canteiros e ao fundo do jardim, ao longo do muro que separava este do pinhal. No entanto, no dia seguinte, ao verificar os resultados da matança não conseguiu ficar satisfeito. Uma centena de caracóis tinha já morrido e muitos outros encontravam-se moribundos, envoltos em secreções de baba, numa visão confrangedora e repulsiva. Jurou, a si mesmo, que não voltaria a usar tal estratégia e, durante vários dias, penitenciou-se a apanhar os moluscos, impiedosamente assassinados.
O segundo método foi o das cebolas. Comprou dez quilos delas e cortou-as às rodelas, com cerca de um centímetro de espessura e espalhou-as ao longo dos muros. Durante três dias pareceu-lhe que a atividade noturna tinha diminuído, mas depois a invasão pareceu tornar-se ainda mais persistente.
A abundância dos rastejadores era tanta que o fez desenvolver a ideia ruminativa de que ouvia o roçar das conchas enquanto dormia. Sonhou que eram sempre diferentes e que existia, no pinhal, um imenso germinador, que todas as noites expelia vertiginosamente caracóis para a grande invasão dos jardins.
Começou, então, a duvidar do seu discernimento. Como podia ele saber se os bichos que arremessava por cima da madressilva regressavam? Podiam ser outros, mas essa ideia era assustadora, pois implicava uma proliferação quase demoníaca das criaturas babentas que ele tanto detestava.
Um dia, ao anoitecer, sentou-se numa cadeira, junto à janela de sacada com vista para o jardim e pensou na melhor maneira de saber se aqueles que eram arremessados regressavam ou não.
Movido, como sempre, pelos seus pensamentos teimosamente ruminativos, ficou ali, quieto, durante cerca de duas horas, observando a inevitável castradora do olhar, a densidade noturna, a introduzir-se nas sombras e, depois no interior dela própria. Ligou os candeeiros exteriores e viu os muros salpicados de moluscos. Desligou a luz e ficou novamente com os olhos na escuridão.
Foi nessa altura que teve a ideia. Podia marcar os caracóis, para reconhecê-los. E, visto que as horas escolhidas para o assalto às folhas tenras das plantas eram as noturnas, nada melhor do que pintá-los com uma substância luminescente, que os fizesse brilhar no escuro. Não podia ser tóxica, nem impedir a respiração dos bichos. Elaborou um plano que lhe permitiria ter a noção de quantos regressavam e quanto tempo depois.
No primeiro dia pintou vinte conchas, com tinta verde. Pintou-as cuidadosamente, segurando os caracóis com luvas médicas. Depois atirou-os para longe e esperou algumas horas, à janela de sacada, tentando detetar o seu regresso. Mas nenhum voltou.
No segundo dia, coloriu mais vinte, de vermelho. Nessa noite observou que quatro com fluorescência verde tinham retornado. Continuou com o plano, utilizando o amarelo, o laranja, o roxo e o azul. Em cada dia pintava vinte, com uma cor diferente. Quando esgotou as cores começou a misturá-las, de modo a ter uma grande diversidade de combinações. Entretanto, já concluíra, a partir da análise exaustiva das longas observações do jardim noturno, que, em média, na segunda noite, após terem sido pintados, regressavam quatro, na terceira mais quatro, na quarta três, na quinta três e na sexta um. Ao sexto dia tinham voltado quinze em vinte. Os outros cinco não retornavam, ou não eram observados.
Augusto continuou com os mesmos procedimentos meticulosos de pintura e de observação durante trinta dias. Sem dar por isso, começou a gostar de o fazer. O velho nojo que sentia desde a infância foi-se mitigando, até desaparecer. Ele tornou-se mesmo capaz de segurar os bichos sem luvas. Porém, à medida que os assinalava, eram cada vez menos os que encontrava por marcar. Quarenta dias depois de iniciar esta estratégia não encontrou um único caracol por pintar. Tinha, no jardim, cerca de quatrocentos caracóis, salpicando os muros, deixando um rasto no solo e nas plantas.
Numa noite de junho, Augusto tomou consciência de que já não os detestava. Sentou-se numa cadeira, às escuras. Olhando para o jardim. As fluorescências policromas encheram a química da retina. Imaginou-se a olhar o céu estrelado, na companhia de Deus. Na verdade, já não queria preservar a salsa, nem as dálias, a hortelã ou outras plantas. Já não o incomodava a voracidade dos moluscos. O espectáculo da luminescência das conchas fazia do quintal um lugar mágico. Ouviu o barulho de uma janela a fechar-se. Olhou para as casas e teve a certeza de que alguns vizinhos espreitavam, no interior das janelas, o estranho fenómeno. E então, pela primeira vez em muitos anos, orgulhou-se daquilo que fizera, sentiu-se um criador genuíno. Pintara um quadro vivo no seu quintal, um quadro onde fora aniquilada a repelência, as oposições se transformavam em luz e o príncipe monstruoso abandonava a maldade e luzia na noite, pequeno e simples, como a vida, imenso e belo, como as estrelas.