O ESPELHO
Existia um espelho na berma de uma estrada, onde o sol incidia sem qualquer pudor. O vidro polido, por uma mão sagrada, guardava as existências no interior. Tinha o mundo cá fora, com a luz e as cores, tristezas, alegrias, solidão e amor, desespero e esperança nos dias melhores, onde o tempo acabasse sem fome e sem dor. Quando algum viajante passava por ele, o espelho, de manso, sondava-lhe a vida, vendo se o seu corpo era apenas pele, ensacando ossos e carne ferida. Se era esse o caso, procurava no fundo das memórias doridas e amontoadas, alguma que tivesse a vontade de um mundo, cheio do orgulho das coisas passadas, pleno da esperança das coisas futuras…
“Vem cá, viajante, deixa o teu lamento, perdeste o caminho, já não o procuras, vem já caminhante, ganha novo alento, esquece o sacrifício das horas mais duras.”
E então os seres deixavam-se ir, na voz que os chamava do espelho sagrado, passavam o limbo e, do outro lado, ganhavam o impulso de um novo existir, onde o sol se punha e a luz não faltava e os aromas desciam serenos do céu e todos sentiam que o destino era seu e o brilho das almas nunca definhava. Lá fora, na estrada, o infeliz caminhante ainda tinha o corpo curvado pelos anos e a alma roída pelos desenganos, arrastava de novo os pés no alcatrão, mas sentia-os mais leves, pois tinha a visão, de que a sua vida também existia, num mundo perfeito, onde não havia a lama da terra a tapar-lhe a ilusão.