maldito seja Picasso
sentado no wc da solidão
defeco entusiasmos pelas montanhas do logro
quatro metros quadrados de loucura redonda
mil rostos disformes
vómitos de bexiga
estou louco deliro
o sifão é o útero das inconsistências
e o lavatório é o medo social
toalhas esvoaçam no fervilhar da mente
um padre corta um bolo de aniversário com uma cruz
e um médico monstruoso
semeia comprimidos nas barrigas dos mortos
andam feras à solta alucinadas
os dentes a pingar livros
as garras com risos de pastilha elástica
sinto que a morte passa por mim num farfalho de asas
e ao desaparecer
deixa um amplo estridular insuportável
um grilo ralo eclodiu
de um dos rostos do pavimento
meu deus!
deus?
a religião é o mundo algaliado
para despejar a frustração
e o medo
há três filmes a correr em simultâneo na minha cabeça
caras que se transformam noutras caras
humanos e animais que se transmutam
o chão tornou-se tridimensional
tenho vertigens
creio que vou cair no abismo
há um pescoço que se estica e o seu rosto foca-me do teto
um dos olhos salta
e bate-me na fronte
e produz um ruído que ecoa no meu crânio
como num armazém vazio e amplo
como quando batemos com a cabeça durante o sono
há dedos que me apontam
e lábios que segredam cheiros
e suores que escorrem não sei de onde
e danças de dançarinos incorpóreos
que não são executadas por nenhuma matéria
e vejo-as claramente
como vejo o amor
a flutuar sobre duas sobrancelhas
assolam-me pensamentos fugazes
inconsequentes
o amor é um ímpeto para o diferente
e nunca quis a replicação de nada
ou seríamos todos clones
o amor vive do ruído
e decora a banalidade com matizes de encanto
é a justificação da morte
dizem que Picasso pintou Guernica
para representar a guerra e o sofrimento
mas ele nunca fez tal coisa
porque nunca conheceu o amor
pois somente queria ser eterno
e adorado
pintou apenas a sua vaidade
sentado nas pinceladas da razão
e do narcisismo
agora as figuras de Guernica estão no meu delírio
flutuam como a morte
maldito seja Picasso!