maldito seja Picasso

16-09-2020 02:22

sentado no wc da solidão

defeco entusiasmos pelas montanhas do logro

quatro metros quadrados de loucura redonda

mil rostos disformes

vómitos de bexiga

estou louco deliro

o sifão é o útero das inconsistências

e o lavatório é o medo social

toalhas esvoaçam no fervilhar da mente

um padre corta um bolo de aniversário com uma cruz

e um médico monstruoso

semeia comprimidos nas barrigas dos mortos

andam feras à solta alucinadas

os dentes a pingar livros

as garras com risos de pastilha elástica

sinto que a morte passa por mim num farfalho de asas

e ao desaparecer

deixa um amplo estridular insuportável

um grilo ralo eclodiu

de um dos rostos do pavimento

meu deus!

deus?

a religião é o mundo algaliado

para despejar a frustração

e o medo

há três filmes a correr em simultâneo na minha cabeça

caras que se transformam noutras caras

humanos e animais que se transmutam

o chão tornou-se tridimensional

tenho vertigens

creio que vou cair no abismo

há um pescoço que se estica e o seu rosto foca-me do teto

um dos olhos salta

e bate-me na fronte

e produz um ruído que ecoa no meu crânio

como num armazém vazio e amplo

como quando batemos com a cabeça durante o sono

há dedos que me apontam

e lábios que segredam cheiros

e suores que escorrem não sei de onde

e danças de dançarinos incorpóreos

que não são executadas por nenhuma matéria

e vejo-as claramente

como vejo o amor

a flutuar sobre duas sobrancelhas

assolam-me pensamentos fugazes

inconsequentes

o amor é um ímpeto para o diferente

e nunca quis a replicação de nada

ou seríamos todos clones

o amor vive do ruído

e decora a banalidade com matizes de encanto

é a justificação da morte

dizem que Picasso pintou Guernica

para representar a guerra e o sofrimento

mas ele nunca fez tal coisa

porque nunca conheceu o amor

pois somente queria ser eterno

e adorado

pintou apenas a sua vaidade

sentado nas pinceladas da razão

e do narcisismo

agora as figuras de Guernica estão no meu delírio

flutuam como a morte

maldito seja Picasso!