Krista

25-11-2019 00:36

quero viver sem ter de pensar

no que a vida é ou no que tem de ser

sentir apenas o corpo e ser janela

invadida por estímulos ingénuos

que simplesmente aparecem

qual viajante sem destino

e sem memória

que apenas se apresenta sorridente

desprovido de tudo o que é pertença

despojado de tudo o que é razão

no simples e profícuo intuito

de coisa nenhuma

quero ter um piloto automático no corpo

e um cozinheiro de todos os sentidos

e um espadachim

e um trapezista

e uma infinidade de seres caprichosos

todos desprovidos de cabeça

mas com grandes corações cheios de pernas

sou uma casa ávida da luz

que chega faminta dos confins de deus

— ai! que o meu deus é tolinho

como um adolescente

que quer experimentar tudo o que pode

e que se cria e se inventa no caminho

sem o tédio do compromisso

o que lhe apetece é sempre aquilo em que se torna

que muitas vezes é o oposto de si mesmo —

o meu deus tolinho não tem passado

nem futuro

apenas se esparrama no presente

mas cria a ilusão de que já foi

e pode vir a ser

é um fantoche de espelhos que reflectem o interior

e assim criam toda a realidade

a minha vizinha Krista era o meu deus tolinho

tocava violino todas as manhãs

aos ouvidos dos jardins da vizinhança

vivia numa casa em open space

sentava-se junto ao seu pombal

— de madeira suja e carcomida

que apenas tinha pombas imaginárias

porque não era prisão mas liberdade

e trampolim de voos sem condição —

começava a exprimir o que lhe apetecia

semeando ouvidos absolutos até perder de vista

à noite Krista não tocava qualquer música

era somente uma austríaca velha e bêbada

que entaramelava solilóquios indecifráveis

e abria as portas e as janelas

para que o ar entrasse sem barreira

e limpasse tudo o que era erro

porque à noite

em todas as noites desde que nascera

por mais profundo que fosse o seu alento

sentia sempre e sempre falta de ar

como se vivesse

numa atmosfera saturada de ausência

vivera cinquenta anos em Portugal

e apenas aprendera a língua do marido

uma língua grosseira e sarrosa

azeda e ofensiva

que confundia conversas com insultos

e a ensinara a beber para respirar

como se o vinho

libertasse oxigénio

e preenchesse todas as privações

felizmente morrera

o seu marido bêbado e maltratante

esmagado por uma locomotiva

num acidente milagroso

que os outros julgaram ser tragédia

dele ficaram apenas as bebedeiras

e a liberdade de tocar violino

sem ter de esperar pelo ensaio da orquestra

nem pelos concertos

a morte dele transformara-se em música

como deviam ser todas as mortes

por isso a minha vizinha Krista

que vivia numa casa com um pombal vazio

com pombos que não existiam

mas voavam no seu violino

muito acima dos telhados e de tudo

pintava o seu cabelo de arco-íris

e saía

histriónica e cheia de erros

imune como a não existência

uma velha daquela idade

que pintava o cabelo com cores proibidas

e vivia numa casa sem jeito nenhum

e apenas era íntima do seu jardineiro velho

que usava capachinho e pensava

no seu modo específico de pensar

que ela era a flor mais bela do jardim

e de todos os jardins do universo

por isso o jardineiro amava-a com os dotes do olfacto

como todos os jardineiro devem amar

porque o olfacto está no corpo todo

a rir-se da bazófia do nariz

e a fazer o seu trabalho hospitaleiro

de receber odores e convites

— Queres, Manuel? — dizia ela

nas noites em que ele a acompanhava

pedia-lhe sexo mas não queria nada

que não fosse ver-lhe um claro cintilar

daqueles que não trazem luz ao mundo

mas viajam na insondável plenitude

— Sim Krista, estou pronto, já fumego,

vou dispará-los em ti, que me apetece,

aí vão eles subindo, sente-os bem,

mostra-lhes o caminho com o cheiro

do teu incomparável lírio branco…—

ele falava mas ficava quieto

a vê-la embebedar-se mais um pouco

depois aconchegava-a e saía

sem espermatozoides, porque nunca os tivera,

a não ser num tempo muitos antes do amor

à noite Krista  dormia sem receio

as portas e as janelas escancaradas

como se não tivesse nada que valesse a pena

e ninguém percebia

 a absoluta ausência de ladrões

tantas vezes fiquei a vê-la

a sua magreza de cabelo lilás

ou vermelho

ou amarelo

ou de outra cor qualquer

a atravessar as bocas dos vizinhos

os ácidos cobardes dos olhares

e juro que ao vê-la

via o meu deus tolinho a beber elixires

e a semear amores num beco sem saída

e então crescia-me de pronto uma pulsão imensa

uma fome de errar o mais que conseguisse

e de arder nos meus erros e nas minhas paixões

e de sofrer

 sofrer

e amar

amar

porque o meu deus tolinho tem margens de arco-íris

e brincadeiras de feto

e é um simples útero que tudo promete

e nada tem porque tudo perde

e deixa de ser deus por continuar a sê-lo.