Krista
quero viver sem ter de pensar
no que a vida é ou no que tem de ser
sentir apenas o corpo e ser janela
invadida por estímulos ingénuos
que simplesmente aparecem
qual viajante sem destino
e sem memória
que apenas se apresenta sorridente
desprovido de tudo o que é pertença
despojado de tudo o que é razão
no simples e profícuo intuito
de coisa nenhuma
quero ter um piloto automático no corpo
e um cozinheiro de todos os sentidos
e um espadachim
e um trapezista
e uma infinidade de seres caprichosos
todos desprovidos de cabeça
mas com grandes corações cheios de pernas
sou uma casa ávida da luz
que chega faminta dos confins de deus
— ai! que o meu deus é tolinho
como um adolescente
que quer experimentar tudo o que pode
e que se cria e se inventa no caminho
sem o tédio do compromisso
o que lhe apetece é sempre aquilo em que se torna
que muitas vezes é o oposto de si mesmo —
o meu deus tolinho não tem passado
nem futuro
apenas se esparrama no presente
mas cria a ilusão de que já foi
e pode vir a ser
é um fantoche de espelhos que reflectem o interior
e assim criam toda a realidade
a minha vizinha Krista era o meu deus tolinho
tocava violino todas as manhãs
aos ouvidos dos jardins da vizinhança
vivia numa casa em open space
sentava-se junto ao seu pombal
— de madeira suja e carcomida
que apenas tinha pombas imaginárias
porque não era prisão mas liberdade
e trampolim de voos sem condição —
começava a exprimir o que lhe apetecia
semeando ouvidos absolutos até perder de vista
à noite Krista não tocava qualquer música
era somente uma austríaca velha e bêbada
que entaramelava solilóquios indecifráveis
e abria as portas e as janelas
para que o ar entrasse sem barreira
e limpasse tudo o que era erro
porque à noite
em todas as noites desde que nascera
por mais profundo que fosse o seu alento
sentia sempre e sempre falta de ar
como se vivesse
numa atmosfera saturada de ausência
vivera cinquenta anos em Portugal
e apenas aprendera a língua do marido
uma língua grosseira e sarrosa
azeda e ofensiva
que confundia conversas com insultos
e a ensinara a beber para respirar
como se o vinho
libertasse oxigénio
e preenchesse todas as privações
felizmente morrera
o seu marido bêbado e maltratante
esmagado por uma locomotiva
num acidente milagroso
que os outros julgaram ser tragédia
dele ficaram apenas as bebedeiras
e a liberdade de tocar violino
sem ter de esperar pelo ensaio da orquestra
nem pelos concertos
a morte dele transformara-se em música
como deviam ser todas as mortes
por isso a minha vizinha Krista
que vivia numa casa com um pombal vazio
com pombos que não existiam
mas voavam no seu violino
muito acima dos telhados e de tudo
pintava o seu cabelo de arco-íris
e saía
histriónica e cheia de erros
imune como a não existência
uma velha daquela idade
que pintava o cabelo com cores proibidas
e vivia numa casa sem jeito nenhum
e apenas era íntima do seu jardineiro velho
que usava capachinho e pensava
no seu modo específico de pensar
que ela era a flor mais bela do jardim
e de todos os jardins do universo
por isso o jardineiro amava-a com os dotes do olfacto
como todos os jardineiro devem amar
porque o olfacto está no corpo todo
a rir-se da bazófia do nariz
e a fazer o seu trabalho hospitaleiro
de receber odores e convites
— Queres, Manuel? — dizia ela
nas noites em que ele a acompanhava
pedia-lhe sexo mas não queria nada
que não fosse ver-lhe um claro cintilar
daqueles que não trazem luz ao mundo
mas viajam na insondável plenitude
— Sim Krista, estou pronto, já fumego,
vou dispará-los em ti, que me apetece,
aí vão eles subindo, sente-os bem,
mostra-lhes o caminho com o cheiro
do teu incomparável lírio branco…—
ele falava mas ficava quieto
a vê-la embebedar-se mais um pouco
depois aconchegava-a e saía
sem espermatozoides, porque nunca os tivera,
a não ser num tempo muitos antes do amor
à noite Krista dormia sem receio
as portas e as janelas escancaradas
como se não tivesse nada que valesse a pena
e ninguém percebia
a absoluta ausência de ladrões
tantas vezes fiquei a vê-la
a sua magreza de cabelo lilás
ou vermelho
ou amarelo
ou de outra cor qualquer
a atravessar as bocas dos vizinhos
os ácidos cobardes dos olhares
e juro que ao vê-la
via o meu deus tolinho a beber elixires
e a semear amores num beco sem saída
e então crescia-me de pronto uma pulsão imensa
uma fome de errar o mais que conseguisse
e de arder nos meus erros e nas minhas paixões
e de sofrer
sofrer
e amar
amar
porque o meu deus tolinho tem margens de arco-íris
e brincadeiras de feto
e é um simples útero que tudo promete
e nada tem porque tudo perde
e deixa de ser deus por continuar a sê-lo.