Jantámos num ambiente nostálgico
Jantámos num ambiente nostálgico, proporcionado pelo novo modelo de cozinha feelings24, com uma paisagem de fundo recriada a partir das imagens do século vinte. Um contexto rural, com árvores e animais já extintos, ribeiras calmas, céu azul e sol visível, como já não podemos observar, por causa da atmosfera, enevoada e tormentosa, que nos cobre e nos impede de ter essa relação íntima e criativa que acompanhou, durante milénios, a evolução da humanidade.
Avançamos no programa, até ao anoitecer. Recostámo-nos num sofá e ficámos a contemplar um céu divinamente estrelado, pulsando infinitude. Uma lua grande e serena pairava no céu virtual. Demos as mãos e sintonizámos os cérebros no mesmo canal de sensações. Deixámo-nos invadir pelo sentimento do sublime. Como éramos contraditórios, naquela paisagem programada! Esmagados pela imensidão cósmica e, em simultâneo, interiorizando aquela vastidão, tornando-a carne do nosso corpo, como se participássemos da alma daquela natureza universal intraduzível. Estávamos ali, rodeados por paredes de proteína sintética W23, imaginando-nos a céu aberto, numa paisagem de um tempo distante, como se ainda tivéssemos um cérebro primitivo e puro, que se aturdia e saciava com sensações do limitado corpo humano. Um tempo em que talvez a felicidade fosse mais acessível, estivesse ao alcance de um toque, de um olhar, de um ouvido atento ou de um simples odor.
Apenas há trezentos anos, estávamos num planeta calmo, cuja realidade material alimentava em nós um bem-estar sem artifícios. Era a natureza da Terra que nos estimulava directamente e não a espantosa parafernália de biomáquinas que nos rodeiam e em que nós cada vez mais nos transformamos. Gostava de me transportar para esse tempo e usufruir das sensações puramente humanas. Maravilhosamente constituídas a partir das necessidades animais e do grande jogo da vida e da morte, da cooperação e da competição. Como seriam os afectos da noite? O que sentiriam essas criaturas ainda tão cheias de animalidade, ao contemplar a queda de cristais de água, a que chamavam neve, ao observar a calma superfície azul de um oceano ainda navegável, ao desfrutar as verdadeiras cores da natureza e a multiplicidade dos odores que a terra produzia? Como seria escutar toda aquela variedade de animais já extintos, expressando-se na noite?
Rosa, que sintonizara o nosso neurofone, disse-me:
— Compreendo o que estás a pensar. Foi tão longo o caminho e em tão pouco tempo!
Parece incrível como o mundo se transformou e o nosso organismo se adaptou à tecnologia. Mas talvez o nosso cérebro primitivo ainda faça sentir a sua voz, ainda nos fale, subrepticiamente, dessa ancestralidade em que os homens se sentiam simultaneamente frágeis e omnipotentes, sabiam que o grande oceano da vida podia, com as suas ondas imprevistas e indomáveis, abater e afundar irremediavelmente as suas existências mas, ao mesmo tempo, deixavam-se invadir pela ingénua e maravilhosa sensação de que constituíam o centro de toda a realidade, de que as estrelas, o espaço infinito, o mundo, a vida, as coisas inanimadas, as partículas e os eventos fluíam com a extraordinária missão de lhes apoiar a sobrevivência.
Rosa pediu-me para utilizarmos o exobrain. Liguei o conector e percebi imediatamente que ela queria usar o editor erótico, isto é, estava a preparar-nos para um programa sexual. Vi que tínhamos entrado em conexão. Percepcionei-lhe a expressão lasciva, os movimentos lúbricos. Era uma amante excepcional. Dominava, com perícia e criatividade, todos os percursos sinápticos do erotismo. Em perfeita sintonia de cérebros, os lábios engrandeceram e avermelharam-se, tomaram as cores e as texturas das cerejas húmidas, pareciam sair do rosto para se aproximarem de mim, num convite irrecusável ao contacto e ao roçar das mucosas, numa fricção quente e húmida. Ao mesmo tempo as pupilas dilatavam-se e enchiam-se de um brilho apelativo, de uma luz sedutora que agia sobre mim como se eu fosse uma borboleta nocturna. As sobrancelhas elevaram-se, numa pose simiesca de confiança e de convite. As faces enrubesceram e toda a pele do corpo puxou para si o calor interno, latejando e desnudando-se, aproximando-se da textura e do colorido das mucosas. Um fluxo torrencial de hormonas avassalou os meus lobos olfactivos. Elevamo-nos bruscamente e pairámos, frente a frente. O seu corpo feminino dobrou-se para a retaguarda e os seios redondos, talosos, brilhantes e húmidos apontaram aos meus olhos dois mamilos rubros e intensos. Uma pulsão irrefreável tomou posse dos circuitos neuronais. Os corpos tocaram-se no ar, quentes como brasas, afastaram-se e voltaram ao contacto, deslizaram um no outro, esfregaram-se, sentiram os odores activos das secreções, enroscaram-se, subiram mais no espaço, levitando juntos, retesados pelo caudal do sangue ardente. As transições da aproximação e do afastamento proporcionaram uma excitação sobre-humana, que levou à polução intempestiva.
A sintonia orgásmica foi esplêndida, deixou os tecidos abrasados e ofegantes, deitados lado a lado, contemplando o admirável céu estrelado, o espaço infinito, a vastidão.
Era sempre a Rosa que conduzia as sequências eróticas. Tornou-se uma especialista no domínio das potencialidades quase ilimitadas do exobrain. A sua imaginação e sensibilidade eram excelentes. A fantástica exuberância das sensações ocorridas nos nossos cérebros suplantava, em muito, a antiga prática sexual baseada no contacto físico dos corpos e na troca real de fluidos. Tais práticas foram proibidas em todo o mundo, há várias décadas, sendo as coimas muito pesadas para os transgressores. Porém, embora os seres humanos tenham tido, ao longo da história, um fascínio incontido pelos actos proibidos, a verdade é que, neste caso, isso não se verificou, excepto nalguns grupos underground, que recorrem a químicos muito poderosos para conseguirem tornar os impulsos genitais suficientemente fortes para garantir algum prazer real. Mesmo que a norma anti-cópula não existisse o acto sexual físico teria desaparecido dos costumes e dos vícios. A diferenciação dos sexos, que acompanhou a evolução da espécie, tornou-se muito ligeira. O formato natural mais generalizado é o andrógino, com leve inclinação para o feminino. As condições ambientais trouxeram a impotência viril e a esterilidade das mulheres. Por outro lado, a inutilidade do acto procriador, devido ao prolongamento da longevidade individual, também contribuiu para a redução dos comportamentos relativos à fornicação.
Li, nas bases de dados sobre a literatura clássica, de um dos grandes impérios da história humana, o romano, que um dos mais célebres escritores desse tempo escreveu uma frase que ficou célebre durante milénios, e que era a seguinte: “Post coitum omne animal triste”. Esta frase latina queria dizer que o coito, como era designado o acto de introdução do órgão genital no aparelho vaginal, tinha consequências sentimentais e psicológicas negativas. Parece que tais actos, embora fossem o culminar de um ímpeto pujante da natureza viva e produzissem uma incomparável experiência de êxtase na química encefálica, deixavam os homens mergulhados numa profunda tristeza, como se, acabado o entusiasmo do desvario carnal, tomassem consciência da cruel inutilidade do exercício fertilizador, como se o esgotamento trazido pela mobilização das energias pulsionais fizesse enfraquecer a visão optimista do mundo e trouxesse às consciências a realidade efémera das existências. Talvez os homens, e até os animais, se sentissem o objecto de uma ironia da natureza, pois o optimismo da projecção genética no futuro era também, numa outra perspectiva, mais intuída do que pensada, o reconhecimento da inevitabilidade da morte.
Excerto de AMULHER QUE QUERIA SER VELHA