Homem ao contrário
Foi uma vez um homem que nasceu ao contrário
os pés apontados na direção do céu
“de pernas para o ar” costumavam dizer-lhe
a cabeça movia-se deslizando na terra
os cabelos mexiam como pés ambulacrários
e faziam-no avançar
com o impulso que vinha das profundezas
um fluido terroso
cheio de sabor a lama
as pernas essas
erguiam-se bem alto
e davam passos para se libertarem da gravidade
e subirem
ao local onde os caminhos são fáceis
e mágicos
escapando à escravidão das causas
e dos efeitos
porém o ar era demasiado denso
e impiedoso
e por isso os pés não podiam saltar
para os confins do cosmos
para lá das estrelas
para o hálito de Deus
mexiam-se como se caminhassem
mas estavam presos no local
onde a cabeça os colocava
um mundo estranho
estendia-se perante aqueles olhos
porque tudo parecia diferente
os bichos rasteiros eram maiores
e mais numerosos
e também mais cruéis
as vozes sociais
vinham de cima
carregadas com desdém
mas os pé do homem estavam acima delas
e o homem dizia:
“tenho a sola dos sapatos acima das palavras
por isso não corro o risco de as pisar
mas também não tenho o privilégio
de me sustentar nelas
e de subir
com o sonho que elas criam
e com as ilusões que nos incutem
eis-me aqui
um animal de palavras rasteiras
e pés altivos
cheio do paradoxo da diferença
a boca com sabor a minerais
os olhos com rastos de vermes
a cabeça noiva de fungos e raízes
os ouvidos preenchidos pelos barulhos subterrâneos
descobrindo
que o verdadeiro céu está onde nós quisermos.”