Homem ao contrário

09-05-2019 00:02

 

Foi uma vez um homem que nasceu ao contrário

os pés apontados na direção do céu

 “de pernas para o ar” costumavam dizer-lhe

a cabeça movia-se deslizando na terra

os cabelos mexiam como pés ambulacrários

e faziam-no avançar

com o impulso que vinha das profundezas

um fluido terroso

cheio de sabor a lama

as pernas essas

erguiam-se bem alto

e davam passos para se libertarem da gravidade

e subirem

ao local onde os caminhos são fáceis

e mágicos

escapando à escravidão das causas

e dos efeitos

porém o ar era demasiado denso

e impiedoso

e por isso os pés não podiam saltar

para os confins do cosmos

para lá das estrelas

para o hálito de Deus

mexiam-se como se caminhassem

mas estavam presos no local

onde a cabeça os colocava

um mundo estranho

estendia-se perante aqueles olhos

porque tudo parecia diferente

os bichos rasteiros eram maiores

e mais numerosos

e também mais cruéis

as vozes sociais

vinham de cima

carregadas com desdém

mas os pé do homem estavam acima delas

e o homem dizia:

“tenho a sola dos sapatos acima das palavras

por isso não corro o risco de as pisar

mas também não tenho o privilégio

de me sustentar nelas

e de subir

com o sonho que elas criam

e com as ilusões que nos incutem

eis-me aqui

um animal de palavras rasteiras

e pés altivos

cheio do paradoxo da diferença

a boca com sabor a minerais

os olhos com rastos de vermes

a cabeça noiva de fungos e raízes

os ouvidos preenchido pelos barulhos subterrâneos

descobrindo

que o verdadeiro céu está onde nós quisermos.”