Hemingway

28-11-2018 00:50

O rubor do tinto passa diretamente para o rosto e para a alma da mulher, o sangue aflui à pele e aquece-a com a tentação, com o desejo do mimo e da intimidade. Os olhos aquecem mais do que o sabor. Tal como o forcão vai quebrando as investidas do touro, também o vermelho de um bom copo, de forma adequada à fluidez, vai, mesmo que não seja bebido, dizimando as defesas, os receios e os costumes mais certinhos.

Carlos era um admirador fervoroso de Hemingway, o escritor com coração de touro, profundo conhecedor da guerra e das mulheres. As cores do vinho e do sangue, enquadradas na vivacidade espanhola, transportavam-no para a plenitude da vida. Arriscava tudo pelos impulsos da sedução de si próprio e das mulheres. O amor apenas se concretiza quando nos sentimos eternos, traduz-se no pleno sentimento da imortalidade. Por isso ele foi o seu maior sedutor, o feminino de si próprio e da sua masculinidade excessiva, o maior inimigo de si mesmo. Quanto mais se ia dividindo e perdendo mais ganhava o sentimento do eterno. Uma vida tão intensa, não permitia atos neutros, coisas descoloridas e mudas, levadas rapidamente pela gulodice das horas. Era por isso que escrevia de pé e nunca amarrotava as páginas falhadas, deixava-as cair, pelos declives do ar, e espalharem-se pelo chão, colorindo a frieza do soalho com pedaços de alma.

Hemingway via nessas folhas o vermelho do sangue e da guerra, os gritos das crianças, atiradas pelos soldados contra as paredes para estilhaçarem os corações das mães. As folhas de papel caíam inteiras e planas com as intuições do momento, sendo substituídas na máquina por outras, ainda limpas mas disponíveis para o apelo da loucura criativa.

Assim tombavam as almas na guerra espanhola, que era do mundo e de ninguém em particular, era da fome de estar vivo e do olhar utópico dos que se deixavam seduzir pela ideia de progresso do homem civilizado.

Hemingway bebia como ninguém, para afastar a palidez que ameaçava entorpecer-lhe as viagens, caminhava furiosamente na volatilidade do álcool, saltava para a arena e enfrentava o touro, dando-lhe palmadas nos quartos traseiros, inebriava-se com o clamor da multidão, detestando sempre a multidão, arfava no prazer da música, fosse ela materializada nos sons dos instrumentos, nas cabeças dos touros, no clamor do povo, na júbilo do sexo, em tudo o que fazia jorrar, do fundo intangível da realidade, um ímpeto puro de existir.

Disseram que ele foi o seu maior inimigo. Talvez o tenha sido, porque é esse o destino de quem quer ser o seu melhor amigo. Nunca foi capaz de abdicar do desejo excessivo do momento e por isso sempre se combateu a si mesmo.

in o pescador de murmúrios