Fantoche equilíbrio
Existia um fantoche todo feito por si próprio. Estava parado num muro entre dois abismos, sem limites nem referências, pressentindo a possibilidade do fluir das coisas. O seu corpo era gás comprimido, cheio do desejo de permanência. Tinha os pensamentos entorpecidos pelo estado sempre igual e o existir era a mais pura das privações. Vivia fora do tempo, perfeito na satisfação de si mesmo, sem família, amizade, lar ou mundo.
Porém, um dia o fantoche foi acometido pela solidão e daí nasceu o nojo de si próprio. E perguntou:
- Porque me sinto castrado e nasce em mim a voracidade dos meus tecidos?
E então o fantoche meteu as mãos pelo interior de si mesmo, rasgou as entranhas e dividiu-se em infinitos bocados. Mas, como corria o risco de cair num dos abismos que existiam de cada um dos lados do seu corpo, não podia crescer numa das direcções sem ter a compensação na outra. O seu engrandecimento era necessariamente simétrico. Habilmente, o fantoche descomprimiu-se para se exaltar com metamorfoses desmedidas. E nessas transformações existia um interminável conflito entre o desejo de se manter igual a si mesmo e o de se tornar outro completamente distinto. Deste modo derivou em jogador e em camaleão, modelando as infinitas partes por um ou outro destes instintos. Enquanto jogador, tinha o copioso desejo do novo e do diferente. Como camaleão, sentia perpetuamente a vontade de assemelhar cada uma das suas partes às que lhe estavam próximas. Por isso o corpo não era mais do que um ciclo constante de equilíbrios e desequilíbrios, de novidades e repetições. Como o risco de tombar nos abismos era forte, ele, não podia criar nenhuma das suas células sem ter que destruir uma semelhante ou criar outra no seu lado oposto. E lamentou-se:
- Como posso viver na absoluta mesmidade, cheio da vertigem de mim próprio, perpetuamente me devorando para me criar!? Como poderei suportar a consciência do meu isolamento?!
E então repartiu a sua consciência por todos os seus bocados e criou uma extraordinária profusão de fantoches dentro de si mesmo. E disse aos fantoches:
- Vivei a ilusão do uno e do múltiplo. A cada instante procurai os pequenos prazeres, cheios de uma satisfação incompleta. Esquecei-vos de que todos os vossos objectivos são efémeros e redundantes. Porque apenas eu conto, fantoche de todos os fantoches, mas, voluntariamente, por vós reparto a consciência para dela, no seu todo, me esquecer. Saltitando de procura em procura, de troféu em troféu e de perda em perda, eis como todos sereis impregnados da minha renúncia e do meu caminho. Por isso nenhuma acção concretizará a meta definitiva, porque todas as grandes metas serão equidistantes. E eu, enquanto fonte, meio e fim, apenas me conduzirei pelo instinto do meu equilíbrio necessário.
E falando nestes termos o fantoche dançou e multiplicou-se entre os abismos.