Esperando a vida
ESPERANDO A VIDA
A menina Glória vivia num anexo,
decorado com os seus noventa anos,
sozinha nos dias e nas noites,
esperando a vida.
Parecia uma boneca, pequenina,
feita de porcelana, linda e frágil,
serena e doce como sempre fôra,
vestida com olhares de menina.
Não tinha televisão, rádio ou jornais,
nem computador nem internet,
tinha apenas a casa e as suas coisas,
e um século de memórias para amar.
A vida chegava em cada dia
por volta das onze da manhã,
saltava dos ponteiros do relógio,
dilatava-lhe as pupilas
e entrava
para o centro do seu entusiasmo.
- Prepara-te Glorinha, está na hora,
escova o cabelo
veste-te,
perfuma-te,
põe a tua base e o batom,
calça os sapatinhos de verniz,
escolhe os teus colares e as pulseiras,
põe todas as cores a namorar.
Ao meio-dia, Glorinha estava pronta,
alisava o vestido e o cabelo,
olhava-se ao espelho a conferir
se tudo estava bem equilibrado,
se as cores não entravam em conflito,
se a maquilhagem queria algum retoque,
abria a mala de mão e analisava
todos os objectos que lá estavam,
abria a porta do anexo e saía,
com o sentimento de quem nasce.
A menina Gloria descia a rua toda,
nos seus passinhos curtos, vagarosos,
de quinze centímetros esforçados,
o olhar feito luz e entusiasmo.
O restaurante,
esperava por ela há vinte anos,
todos os dias a esperava
e a recebia,
como quem recebe uma princesa.
Ela chegava,
vinda de uma distância alongada,
pelos seus sapatinhos trinta e quatro,
absoluta naquele compromisso
de ver o seu marido
que partira
há tanto tempo já
e a deixara
sem filhos ou outra companhia.
“ Menina Glorinha, hoje temos
açordinha de gambas, como gosta,
vá comento o queijinho e a marmelada
que o creme de legumes já aí vem.”
Ela pousava a mala na cadeira
sentava-se bem direita,
barrava uma tosta com o queijo
e depois outra com a marmelada,
olhava a cadeira em frente
e era então,
tal como sempre acontecia,
que o seu marido vinha do passado,
de um tempo antes da morte que o levara,
- há mais de vinte anos -
e ficava ali, inteiro, a acompanhá-la,
a ouvir-lhe os pensamentos e a sorrir
e a falar com ela, como sempre.
Seis vezes por semana ele aparecia
e sentava-se à mesa, a conversar,
indiferente ao barulho do contexto,
visível apenas para ela,
elogiando sempre o seu bom gosto,
as pulseiras, colares e vestidos,
as saias e os casacos,
o diálogo das cores,
a beleza da face,
a pele macia…
Uma vez por semana, à terça-feira,
o restaurante fechava
e nesse dia
ela ficava em casa a olhar as horas
apenas na companhia das memórias,
sem colares, pulseiras ou vestidos,
sem qualquer interesse pelas cores,
sem esperar a vida e o marido
e muito mais próxima da morte.
António Costa