Esperando a vida

25-04-2014 00:48

ESPERANDO A VIDA

 

A menina Glória vivia num anexo,

decorado com os seus noventa anos,

sozinha nos dias e nas noites,

esperando a vida.

 

Parecia uma boneca, pequenina,

feita de porcelana, linda e frágil,

serena e doce como sempre fôra,

vestida com olhares de menina.

 

Não tinha televisão, rádio ou jornais,

nem computador nem internet,

tinha apenas a casa e as suas coisas,

e um século de memórias para amar.

 

A vida chegava em cada dia

por volta das onze da manhã,

saltava dos ponteiros do relógio,

dilatava-lhe as pupilas

e entrava

para o centro do seu entusiasmo.

 

- Prepara-te Glorinha, está na hora,

escova o cabelo

veste-te,

perfuma-te,

põe a tua base e o batom,

calça os sapatinhos de verniz,

escolhe os teus colares e as pulseiras,

põe todas as cores a namorar.

 

Ao meio-dia, Glorinha estava pronta,

alisava o vestido e o cabelo,

olhava-se ao espelho a conferir

se tudo estava bem equilibrado,

se as cores não entravam em conflito,

se a maquilhagem queria algum retoque,

abria a mala de mão e analisava

todos os objectos que lá estavam,

abria a porta do anexo e saía,

com o sentimento de quem nasce.

 

A menina Gloria descia a rua toda,

nos seus passinhos curtos, vagarosos,

de quinze centímetros esforçados,

o olhar feito luz e entusiasmo.

O restaurante,

esperava por ela há vinte anos,

todos os dias a esperava

e a recebia,

como quem recebe uma princesa.

Ela chegava,

vinda de uma distância alongada,

pelos seus sapatinhos trinta e quatro,

absoluta naquele compromisso

de ver o seu marido

que partira

há tanto tempo já

e a deixara

sem filhos ou outra companhia.

 

Menina Glorinha, hoje temos

açordinha de gambas, como gosta,

vá comento o queijinho e a marmelada

que o creme de legumes já aí vem.”

 

Ela pousava a mala na cadeira

sentava-se bem direita,

barrava uma tosta com o queijo

e depois outra com a marmelada,

olhava a cadeira em frente

e era então,

tal como sempre acontecia,

que o seu marido vinha do passado,

de um tempo antes da morte que o levara,

- há mais de vinte anos -

e ficava ali, inteiro, a acompanhá-la,

a ouvir-lhe os pensamentos e a sorrir

e a falar com ela, como sempre.

 

Seis vezes por semana ele aparecia

e sentava-se à mesa, a conversar,

indiferente ao barulho do contexto,

visível apenas para ela,

elogiando sempre o seu bom gosto,

as pulseiras, colares e vestidos,

as saias e os casacos,

o diálogo das cores,

a beleza da face,

a pele macia…

 

Uma vez por semana, à terça-feira,

o restaurante fechava

e nesse dia

ela ficava em casa a olhar as horas

apenas na companhia das memórias,

sem colares, pulseiras ou vestidos,

sem qualquer interesse pelas cores,

sem esperar a vida e o marido

e muito mais próxima da morte.

 

 

 

António Costa