Elias - extrato de NA PERSPETIVA DA LUA

25-04-2014 01:19

4.

Elias

 

a importância dos pormenores

a mulher e a burra

 a perspetiva de um pintor pelos olhos de um asno

a voz off

os relinchos de Cassandra

as conversas banais são as nossas mortalhas.

 

 

Naquele ano conheci o pintor Elias, o mais reputado e extravagante artista de toda a região.

Corpo baixo e forte, barba de vinte centímetros, cabelo comprido e escuro, o olhar sempre atento aos pormenores da paisagem, quer urbana quer campestre.

A importância dos pormenores parecia fulcral para o desenvolvimento da sua criatividade plástica, pois ele possuía uma habilidade pouco habitual para pintar excelentes aguarelas do casario, de portas e fachadas, do rio e da paisagem agrícola.

Mas o que é certo é que o Elias não dava importância nenhuma aos pormenores. Apenas usava aquela expressão que simulava perfeitamente a mais compenetrada atenção aos detalhes porque estava convencido de que as pessoas, isto é, o vulgo, como ele lhes chamava, davam maior crédito ao artista que a manifestasse, julgando que o verdadeiro representador de paisagens tinha que ter um olhar concentrado e profundo, ao qual nenhuma minúcia acidental podia escapar. Por isso ele parava frequentemente em frente das portas, das fachadas e de muitos outros motivos de interesse, observava demorada e telescopicamente os pormenores, perscrutando os corpos e as fisionomias das pessoas como se estivesse em vias de sacar do cavalete, das telas e dos materiais de pintura para duplicar a realidade numa dimensão plana e reduzida, mas com tanta expressão como a original. Porém, uma fixação mais atenta no seu comportamento clarificaria aquilo que, na verdade, se passava: ele não possuía o mínimo interesse pelos detalhes, desdenhava o realismo das impressões, desprezava a minúcia, e toda a pose de artista ideal que apresentava era totalmente fingida. Por isso o olhar dele transpunha facilmente a opacidade dos objectos materiais que tinha à frente e estendia-se muito para além da proximidade, para a grande paisagem da imaginação e do pensamento fantasioso, bem como para o gozo de múltiplas sensações que nele se refinavam e se confundiam, fazendo dele uma sinestesia admirável.

Se alguém parecesse tornar-se objecto da sua atenção e lhe dirigisse a palavra verificaria que ele estava longe, completamente alheado, sem o menor vínculo pessoal, pois a pessoa que ele fingia observar não era, para ele, mais do que uma silhueta difusa, um vulto transparente que não o impedia de se concentrar nas coisas verdadeiramente importantes e essas, como sempre, estavam nos objectos inanimados, nas sensações e na sua prodigiosa vida interior.

O Elias vivia a um quilómetro da vila, do outro lado do rio, com a mulher, Fernanda, e três burras. A casa, decorada por ele, era uma verdadeira obra-prima de sensações: visuais, nas cores e nas formas; olfactivas, nas plantas e nas ervas aromáticas que cultivava; tácteis, devido às texturas variadas que lá podíamos encontrar… Enfim, ele gostava de vincar que o seu montinho era um paraíso dos sentidos e definia-se a si mesmo como um engenheiro das percepções. Apenas o paladar era pouco apreciado por ele, excepto o das tintas e dos outros químicos da pintura, pois a sua veia de artista não se enlameava nos prazeres menores dos alimentos.

Fernanda, a mulher, gostava de plantas, ervas aromáticas e de tudo o que fosse vegetal, incluindo os cigarros, que fumava continuamente, dizem até que durante o sono.

Pouca gente tinha o privilégio de lhe ouvir uma fala. Caminhava nas ruas como um fantasma, magra e branca, com o cigarro ao canto da boca, falando com ela própria e fazendo malha. Parecia um autómato. Às vezes deixava cair o novelo e não dava por isso, continuava a andar e a fazer malha, com um longo fio de lã a desenrolar-se pela rua, até que alguém, mais compadecido, lhe chamava a atenção para o que estava a acontecer.

Ninguém entendia os seus gostos, ideias, alegrias ou tristezas, ninguém lhe conhecia familiares ou a terra de origem ou a idade. Pairava a sensação de que ela apenas existia para o marido, como se tivesse ganho vida a partir de um dos seus quadros.

Era muito raro vê-la.

Elias justificava tal facto dizendo que ela o desconcentrava, pelo que tinham estabelecido o compromisso de apenas estarem juntos às refeições e à noite.

Quem o acompanhava frequentemente nos passeios era uma das burras, Cassandra, que, embora escura, tinha uma enorme mancha branca na testa, que permitia a sua fácil identificação. A burra seguia-o docilmente, a uma distância de cerca de dois metros, sem qualquer necessidade de amarra. Parecia compreender perfeitamente a verbalidade do dono, bem como a sua linguagem gestual. Deixava no ar a ideia de que havia uma enorme cumplicidade entre os dois.

 De facto, ele pintava frequentemente os objectos e as paisagens que ela escolhia, consciente ou inconscientemente. Se ela parava em frente a uma fachada, como se a estivesse a admirar, isso era motivo suficiente para o Elias ganhar inspiração e criar um quadro excelente. As pinturas baseadas nas escolhas de Cassandra eram normalmente as mais admiradas e aquelas a que ele dava maior valor.

A sua afeição pelos asnos crescera-lhe na infância, ao que diziam, porque, como era muito distraído e teimoso, o pai costumava apelidá-lo com a designação desta espécie. Nas raras vezes em que se lhe ouvia uma palavra o Elias brincava com a sua história de vida e afirmava que se sentia um espécime da família dos burros, porque estes eram dotados de grande sensibilidade e premonição, como era visível no formato da cabeça e das orelhas. Daí o nome “Cassandra” para o animal asinário que lhe era mais afeiçoado.

Fernanda, a mulher, morreu de um momento para o outro, com um cigarro ao canto da boca, em paz e em silêncio, como se lhe apetecesse partir.

Elias não fez alarido, recebeu o acontecimento com toda a naturalidade, pois achou que era a natureza dela a afirmar-se. Retratou-lhe o corpo inerte, como se aquela ocasião também fosse uma dádiva, uma oportunidade para o seu génio. Depois marcou com a agência funerária “Boa Viagem” a descida da esposa à terra xistosa do cemitério.

Embora contra a vontade do artista, que pretendia partilhar apenas com Cassandra a despedida da mulher, muita gente compareceu ao funeral. Ele rosnou, contrariado, ao ver tantas pessoas a usufruir daquele momento tão profundamente existencial onde, na sua perspectiva, só existia lugar para a mais pura intimidade, a dele, a de Cassandra e a da esposa falecida.

Dotado de excelentes competências para as artes do desenho, da pintura e da aguarela, que ficava entre as outras duas e era a que mais lhe agradava, o Elias tinha uma antiga ambição, que o acompanhava desde muito novo e que ele considerava fundamental para a elevação do seu percurso de artista. Esse grande impulso situava-se no campo da arte dramática.

Há muito tempo que o pintor criara e encenara, na sua imaginação, uma peça de teatro intitulada A Personagem e o Espelho” que, segundo ele, era a verdadeira chama purificadora dos espíritos lúcidos e criadores, o detonador das consciências, o rastilho da imaginação. Todos os anos o Elias, movido por este sentido de missão, solicitava ao padre que o autorizasse a representá-la no salão paroquial. O clérigo, embora conhecesse as tiradas pouco religiosas do pintor, dava-lhe desconto, pois achava que Deus era bem capaz de, provisoriamente, tirar alguma fé aos artistas para que tivessem maior liberdade na sua natureza criativa.

A acção da peça desenrolava-se num tempo único e num espaço sempre igual.

O cenário incluía um grande espelho e uma pintura, que ampliava um dos anúncios da empreendedora agência funerária “Boa Viagem”, conhecidos pela retumbante natureza técnica e apelativa, um exemplo avançado da melhor estratégia publicitária.

Num desses cartazes podiam ler-se frases aconselhando todas as pessoas com mais de quarenta e cinco anos a aproveitarem a invulgar promoção da funerária. Não era cristão deixar para a família, num momento tão doloroso como o da nossa morte, a preocupação com o nosso funeral. A promoção incluía diversas ofertas bem como desconto de vinte por cento para quem encomendasse duas urnas, uma para si e outra para um familiar.

O dono da funerária era o Aníbal dos Caixões, assim conhecido porque no início do negócio fora ele a construir os receptáculos dos cadáveres, em madeira de pinho escurecida. A veia publicitária não era dele mas sim de um sobrinho, desenhador técnico de construção civil, que criava as ideias na cabeça ao ver a publicidade das agências de viagens. Estava tão convencido da adequação das suas estratégias ao ramo do negócio e da função social da agência que nunca compreendeu porque é que o padre se enfurecia frequentemente com os seus cartazes.

O Elias, contrariamente ao padre, achava-os uma fonte de inspiração, laivos de arte intuitiva e simples donde brotava uma sabedoria profunda sobre a crueza e o absurdo da vida.

No início do primeiro e único acto da peça o autor, encenador, actor e, muito provavelmente, personagem, solicitava que alguém, de entre os presentes, aceitasse desempenhar o papel de “voz off”.

Ninguém se oferecia porque, além de desconfiarem do juízo do artista e temerem o ridículo, não faziam a mínima ideia do que fosse a “voz off”.

O Elias, que já esperava a falta de colaboração dos espectadores, ria do facto. Depois, iniciava a acção dramática, gemendo e gesticulando para o espelho, berrando, caindo, rastejando, cuspindo para o ar, saltando… Contra o que era habitual nele, tornava-se muito falador. Porém, como estava pouco treinado na oralidade, os espectadores pouco conseguiam entender do que ele dizia. Apenas uma afirmação era bem clara e repetia-se inúmeras vezes: “Não existe fome como a da liberdade, mas as cidades só nos dão fastio e as conversas banais são as nossas mortalhas.”

 As peripécias da acção conduziam a um clímax intenso, no qual ele apontava uma pistola ao espelho e o partia com um pontapé, caindo estendido num simulacro de urna. Um foco apontava a pintura baseada no anúncio da agência funerária, ao mesmo tempo que se ouvia a gravação de alguns relinchos da burra Cassandra.

Assim terminava a representação e o público ria e batia palmas, complacente para com a diferença do artista, enquanto este lamentava tal benevolência.

Durante algum tempo, um médico que prestou serviço temporário no hospital fez correr o boato de que o Elias era neurótico, com profundas disfunções sexuais, trazidas do estádio fálico, que o faziam, entre outras coisas, usar a sublimação. Porém, ao longo de todo este tempo eu sempre tive a ideia de que não era um mecanismo de defesa que o guiava, que lhe dava energia, mas apenas, simplesmente, o facto de ter sido arrancado à terra e girar, agora, na perspectiva da lua.

Segundo algumas teorias sobre a formação do nosso satélite, terá sido o embate de um grande corpo celeste que veio transformar o nosso planeta, tornando-o, durante algum tempo, um mundo caótico e lançando para o espaço uma grande porção de matéria que, depois de conhecer o gosto da distância, nunca mais quis regressar ao ponto de partida. Se reflectirmos sobre estes acontecimentos cósmicos não lhe daremos a devida importância, o nosso ponto de vida terreno leva-nos a considerar que estamos em presença de eventos simples, guiados pela lei da causalidade, talvez até acidentais, que em nada se relacionam com a vida e o espírito que parece animá-la. Porém, esta visão fria da natureza, esta ilusão antropocêntrica, esta sabedoria desdenhosa da verdade e cheia de complacência para com a miséria humana, existe para dar a cada um a ideia de que é diferente dos outros mas, ao mesmo tempo, muito igual, porque a diferença é catastrófica, medonha, desintegradora do conceito de um cosmos seguro e do sentimento de confiança. Por isso o mundo vulgar, banal, quotidiano, centrado na previsibilidade, vaidoso, que tem como alicerces os olhares dos outros, é o reino do medo de partir, do receio da viagem. Embrenhados nos ciclos viciosos desta realidade pobre, prendemo-nos com cordas de aço às coisas conhecidas para resistirmos à gravidade da partida. Assim, gastamos o tempo a ver aspectos novos, onde apenas desfilam trastes velhos. Ao aceitarmos que a lua foi arrancada estamos a valorizar a sua permanência na terra, a atribuir-lhe no nosso reino o seu lugar natural. Mas porque é que não pensamos que ela quis partir e, mais do que isso, escolheu não regressar porque conheceu a atracção de outras forças gravíticas? Por mais sacrifícios que passe, quem se eleva raramente quer descer. Ora talvez Freud não seja mais do que uma faceta da perspectiva terrena de encarar o mundo. É certo que teve a ousadia de dizer coisas velhas de um modo diferente, mas não deixou de continuar bem aqui, nas referências simplórias. Construiu uma moradia ousada, cheia de objectos decorativos, de contrastes e de salões misteriosos e fez de conta que o mundo estava todo dentro da moradia. Tirou a lareira da cozinha e da sala-de-estar e colocou-a na cave, escandalizando os seus contemporâneos. Esta inquietação relacionou-se com o facto de o fogo não estar visível, de ter sido ocultado. Na verdade, a energia da casa é a mesma mas passou para a cave, onde ninguém tem acesso, nem mesmo o dono. Porém os cozinhados são os mesmos, a convivência é igual, continua a existir a dualidade do frio e do quente, do claro e do escuro, do superficial e do profundo, do igual e do diferente, da causa e do efeito, do bem e do mal…

Tenho andado a pensar que ele, contrariamente à lua, nunca partiu verdadeiramente em viagem, ficou sempre cá, atento às velhas prioridades.