BARCO

08-05-2019 23:58

O Barco

   

                                                                                 

Era uma vez um barco

que ficava na areia

 a ver os outros barcos perderem-se no mar

 e durante esse tempo

só tinha uma ideia:

tentar viver na areia como os outros no mar.

Ao vê-los partir

ingénuos

destemidos

com os cascos frágeis sulcando a corrente

sabendo que os perigos surgem de repente

na imensidão dos mares embrutecidos

vinham-lhe à memória as imagens

distantes

de um velho pescador vogando sobre as águas

a vida apenas sustentada nas tábuas

do frágil barco

sobre as ondas possantes.

Tão confiante andava o pescador

na fome do mar

tão traiçoeiro

o sustento colhia

o dia inteiro

sem receio do monstro aterrador

lançava as redes com gestos serenos

que aplacavam o abismo que o sustinha

e nos braços

tão frágeis e pequenos

tinha a força do amor que lhe convinha.

Como podia manter-se assim

fecundo

sabendo que o oceano

enfurecido

facilmente o engolia num segundo?

É que ele mantinha um saber profundo

a dizer-lhe

que é melhor ser destruído

do que não viver os riscos deste mundo.

Por isso morrera velho

sobre a areia

a ver os outros homens ir ao mar

cumprindo

o velho impulso que semeia

a crença de que o ir tem um voltar.

Ai, o melhor da vida é não pensar!

Pois qualquer ser que exista arisca o mar

e estará morto se não o tentar.

Por isso o velho barco

esquecido na areia

regressava ao passado na sua memória

e amava o pescador

na velha glória

de ter um ânimo forte

que nada receia.

E então os destroços de madeira

curtidos pelo sol

esquecidos

quase nada

apenas queriam que alguém os pisasse

e os pusesse no sonho e depois os levasse

a viver de novo no mar e na evidência

de que o risco da morte não perturba a existência.