BARCO
O Barco
Era uma vez um barco
que ficava na areia
a ver os outros barcos perderem-se no mar
e durante esse tempo
só tinha uma ideia:
tentar viver na areia como os outros no mar.
Ao vê-los partir
ingénuos
destemidos
com os cascos frágeis sulcando a corrente
sabendo que os perigos surgem de repente
na imensidão dos mares embrutecidos
vinham-lhe à memória as imagens
distantes
de um velho pescador vogando sobre as águas
a vida apenas sustentada nas tábuas
do frágil barco
sobre as ondas possantes.
Tão confiante andava o pescador
na fome do mar
tão traiçoeiro
o sustento colhia
o dia inteiro
sem receio do monstro aterrador
lançava as redes com gestos serenos
que aplacavam o abismo que o sustinha
e nos braços
tão frágeis e pequenos
tinha a força do amor que lhe convinha.
Como podia manter-se assim
fecundo
sabendo que o oceano
enfurecido
facilmente o engolia num segundo?
É que ele mantinha um saber profundo
a dizer-lhe
que é melhor ser destruído
do que não viver os riscos deste mundo.
Por isso morrera velho
sobre a areia
a ver os outros homens ir ao mar
cumprindo
o velho impulso que semeia
a crença de que o ir tem um voltar.
Ai, o melhor da vida é não pensar!
Pois qualquer ser que exista arisca o mar
e estará morto se não o tentar.
Por isso o velho barco
esquecido na areia
regressava ao passado na sua memória
e amava o pescador
na velha glória
de ter um ânimo forte
que nada receia.
E então os destroços de madeira
curtidos pelo sol
esquecidos
quase nada
apenas queriam que alguém os pisasse
e os pusesse no sonho e depois os levasse
a viver de novo no mar e na evidência
de que o risco da morte não perturba a existência.