Alma de Barco
Era uma vez um barco louco que percorria os mares com a quilha voltada para o céu e o bico da proa a apontar as estrelas. E todos os que o viam se escandalizavam, pois não conseguiam aplicar-lhe nenhum dos modelos conhecidos. Como a perspetiva em que o percebiam era diferente, não lhe encontravam as obras mortas mas apenas as vivas, não entendiam onde estava o calado — porque flutuava totalmente acima da água — viam o bombordo do lado direito e o estibordo à esquerda e constatavam que a alheta e as bochechas tinham trocado as respetivas posições. Era todo turquesa e por isso se confundia com o fundo azul do oceano. Flutuava acima da linha de água, mostrando a totalidade da amurada às criaturas marinhas. Nas noites de luar e nos dias de névoa parecia um fantasma à procura de almas, um emissário da morte tentando roubar as energias dos homens. O casco estava limpo e brilhante como na primeira vez em que fora lançado ao mar. Ninguém conseguia observá-lo durante tempo suficiente para formar dele uma imagem precisa, pois desaparecia de modo misterioso e repentino. Talvez se tratasse apenas de uma alucinação, pensavam alguns, descrentes da fidelidade da percepção humana. Mas não, quatro irmãos o haviam construído com o entusiasmo de quem ama. Usaram as melhores madeiras e o mais estável cavername, mas os quatro haviam morrido debaixo dele na primeira viagem. O corpo do barco desaparecera há muito, afundara-se nas águas afóticas dos abismos… Mas as embarcações, como tudo o que existe no mundo, têm alma, e era a dele que assim sofria e se mostrava, tentando redimir-se.