a verdade
a verdade
é o devaneio dos seres que perderam o norte
e atiram glaciares para o fogo do corpo
é o sacerdote que azedou na vida
e fornica ovelhas com os textos sagrados
é o palhaço a rir masturbações
e o farsante a vomitar jurisprudência
e o arquitecto a dar peidos de luz
e o sábio a ejacular provérbios
foi isto que me ensinou um viajante
que tinha um dedo do tamanho de tudo
a indicar que nada era correcto
e a apontar uma culpa medonha e universal
que alastrava e corrompia o mundo
uma culpa dos homens descentrados
que fugiam
como galinhas
da coragem da vida
encontrando protecção no papo das rapinas
o sábio mais verdadeiro que ouvi
era um oximoro concreto
do mais abstracto que podia existir
tinha mil pernas como qualquer licranço
e todas elas se ensarilhavam
e andavam para sítio nenhum
porque não existiam
diz-me rapaz onde está a verdade
— sei lá sei lá —
na ponta da vergasta que abrasa a pele
naquilo que não comes
em tudo o que não tens
na vergonha que sentes
na raiva que te cega
no poder que te exalta…
a água mais verdadeira é a das lágrimas
porque é concreta e exprime
o que as palavras não dizem
nem podem dizer
porque o reino das palavras não tem pessoas
mas apenas bocas feitas de ouvidos
e ouvidos feitos de bocas
enroscados
como cobras
no veneno da dúvida
diz-me rapaz onde está a verdade
— sei lá, sei lá —
no sono mal dormido
no ódio acumulado
na alegria sem pausa
na angústia insuportável
na coragem de ser
e de não ser
de ter e não ter
de dar e não dar…
olha rapaz
passamos o tempo a mastigar sinónimos
que os ácidos da vida não digerem
e o refluxo das frases queima as bocas
somos monstros lôbregos que esgotam
energias
na imagem de um espelho
e se envaidecem
daquilo que não são
depois da tempestade
vem a lembrança
mas as palavras passam sempre ao lado
a verdade da vida a dois
não está nas palavras
mas na acumulação de silêncios
e rotinas
e risos sem pudor
e ruminações
e raivas…
afogo-me
na pura respiração de tudo
e ressuscito
nas incontáveis mortes
que me constroem
diz-me rapaz
onde está a verdade
— sei lá, sei lá!