A ÚNICA MORTE

11-08-2022 05:26

No tempo em que ainda falava com os pássaros

e corria pelo corpo de um deus

que nunca se ausentava

e espalhava plântulas de riso pelos dias

e usava as ferramentas da ingenuidade

para esculpir o céu

a terra de um cemitério esfacelou-me as estrelas

e fez-me desabar nos abismos de um osso

descarnado de tudo o que era deus

conspurcado por tudo o que era nada.

Ali perto um velho

sentado num banco de madeira

deixava os anos roncarem-lhe na boca

a cara centrada no oposto do mundo

e os olhos fechados para toda a leveza.

A terra sepultou-me nesse dia cruel

com pássaros a desabar das profundezas

e asas transformadas em rochedos.

Que estranho caso me levara ali

ou espírito maligno

ou vontade medonha

para me deserdar da minha catedral?

O vazio tutânico do osso

ressoou na amplidão rarefeita

da vacuidade da angústia

e concentrou-se

mais denso que o desespero.

Todas as minhas janelas

se degradaram em noites sem esperança

e espetros ruminantes e opressores

afugentaram o amor que me criara

e me dera um todo muito além das partes

e um modo de respirar que era um puro voo…

Sim, foi a partir daí

que a vida se tornou o seu contrário

pois saiu dela própria e contemplou-se

num leito de respirações sem nexo

num rio a correr para sítio nenhum

na competição de uma pista sem meta.

Por isso eu sei que a única morte

é a vida que se renega e permanece

no ruminar denso de não ser

no sentimento vago de não ter

na persistente ausência do amor.