A ÚNICA MORTE
No tempo em que ainda falava com os pássaros
e corria pelo corpo de um deus
que nunca se ausentava
e espalhava plântulas de riso pelos dias
e usava as ferramentas da ingenuidade
para esculpir o céu
a terra de um cemitério esfacelou-me as estrelas
e fez-me desabar nos abismos de um osso
descarnado de tudo o que era deus
conspurcado por tudo o que era nada.
Ali perto um velho
sentado num banco de madeira
deixava os anos roncarem-lhe na boca
a cara centrada no oposto do mundo
e os olhos fechados para toda a leveza.
A terra sepultou-me nesse dia cruel
com pássaros a desabar das profundezas
e asas transformadas em rochedos.
Que estranho caso me levara ali
ou espírito maligno
ou vontade medonha
para me deserdar da minha catedral?
O vazio tutânico do osso
ressoou na amplidão rarefeita
da vacuidade da angústia
e concentrou-se
mais denso que o desespero.
Todas as minhas janelas
se degradaram em noites sem esperança
e espetros ruminantes e opressores
afugentaram o amor que me criara
e me dera um todo muito além das partes
e um modo de respirar que era um puro voo…
Sim, foi a partir daí
que a vida se tornou o seu contrário
pois saiu dela própria e contemplou-se
num leito de respirações sem nexo
num rio a correr para sítio nenhum
na competição de uma pista sem meta.
Por isso eu sei que a única morte
é a vida que se renega e permanece
no ruminar denso de não ser
no sentimento vago de não ter
na persistente ausência do amor.