A SUBSTÂNCIA DO DESEJO

21-04-2017 00:08

A substância do desejo

A minha vizinha K... era a substância do desejo, um deus adolescente sentado numa cadeira de luz tombada na horizontal, que permitia brincar com o mundo da frente para trás.
Tocava violino todas as manhãs aos ouvidos dos jardins da vizinhança, sentava-se junto do seu pombal — de madeira suja e carcomida, que apenas tinha pombas imaginárias porque não era prisão mas liberdade e trampolim de voos sem condição — e começava a exprimir o que lhe apetecia, semeando ouvidos absolutos até perder de vista.
À noite não tocava qualquer música, era somente uma austríaca velha e bêbada, que entaramelava solilóquios indecifráveis e abria as portas e as janelas para que o ar entrasse, sem barreiras, e limpasse as memórias do marido defunto, que tantas vezes a maltratara e morrera esmagado por um comboio — abençoado maquinista, benditos travões!
Durante a tarde, a minha vizinha, que era o meu deus tolinho, ia ao supermercado com o cabelo às cores, como se tivesse um jardim na cabeça, levava o seu velho jardineiro de capachinho preto, para contrastar com ela e a ajudar a trazer garrafas para as suas noites, a carregar o vício para a sua dor, a preparar o elixir da sua solidão, a deixar de ser deus por continuar a sê-lo.