A Memória de Deus
O meu desejo é uma bota velha incandescente que me abrasa o caminho. Se ela não existisse, eu seria um pé silencioso e frio, sensível às irregularidades do terreno e cheio de medo das passadas afoitas. Gosto de conversar com luz, porque vem de Deus, talvez ela seja o brilho do seu olhar obsceno. Um olhar lúbrico, porque o divino sempre foi desejo, amante tresloucado, absoluta incontinência. Falaram-me de um Administrador esquizofrénico, que nunca tomava os medicamentos — para ser banal — porque lhe roubavam a líbido, e para ele o amor era infinitamente mais importante do que as contas, a gestão das empresas e toda a normalidade. Navegou pelas amantes até ficar demente, e depois da loucura ainda tinha mais pulsões, nada conseguia parar a sua pujança, fragmentou-se a ouvir falas na cabeça, a discutirem acaloradamente a melhor expressão da incontinência. O desejo é o invólucro do andar, gasto pela língua serrilhada dos caminhos, ígneo de tanta fricção nas rugosidades do tempo. Vou calçá-lo para não ser esquecido pela memória de Deus.