A Esfinge

19-05-2014 00:05

O TOURO, O LEÃO A ÁGUIA E A SERPENTE

 

 Olho longamente a paisagem, tão ampla que nem a posso imaginar. O que procuro na vastidão, ao querer transformar os cristalinos em telescópios predadores de céus? Onde está a minha plataforma, o meu centro sem margens, o pasmo de mim mesmo? Que estranhas composições adulteraram a minha individualidade e fizeram do meu desejo um constante precipício, onde me despenho a toda a hora, seguro pela vontade das asas? Mil vozes ressoam nos meus ouvidos, cheias de perspectivas sedutoras e mil outras apontam-me o caminho inverso. Tantas direcções existem na paisagem, tanto destino e tanta encruzilhada! O eco do presente é tão confuso que me resguardo no silêncio dos sonhos e nas fortes estacas do passado. Tão barulhento é o sonho e tão silente! O corpo, esquecido da vontade, inerte no leito do cansaço, cortou a fronteira com a mente e dorme, um sono tranquilo e neutro.

Porém, no território da vontade irrompe um mundo de existências, um universo inteiro de animais, um jogo imparável de ilusões. E que animal sou eu, que ando e corro, rastejo e voo, caço e sou caçado?

Os meus pés de touro percorrem os verdejantes prados do instinto, os cascos possantes sustentando a vida, uma fome infinita, um cio ardente. Habito a natureza da manada. Milhões de estímulos guiam os meus músculos em correrias loucas, procuro saciar rapidamente as coisas simples, alimento-me de inconsciências, choro e rio sem qualquer reserva, embrenho-me nos aromas da terra, extasio-me nos sabores dos alimentos, respiro o inefável bem-estar das cores, visto-me de sensações eróticas, expludo no desejo ardente do futuro, bombeio o sangue nas artérias potentes e canto um hino à vida. Os meus actos mais simples estão cheios de pulsões sem moral, de prazeres sem culpa, de refeições estéticas. Sou um turbilhão telúrico, que faz estremecer o solo com o choque dos impulsos. Rumino continuamente as sensações do corpo e a sensualidade torna-se alimento e voz e aparência. O meu hálito estético faz crescer os prados e apenas neles encontro a satisfação imediata dos prazeres. Repetidamente, um querer indomável sobe das raízes da terra profunda, trazendo as feições primevas da criação.

Mas, eis que outra parte de mim reclama o seu provento, o seu lugar no mundo, o seu papel. O meu peito transforma-se em leão, a fera atenta às deambulações das presas, o predador implacável da carne da manada, aquele que quer repousar tranquilo, sentir-se solitário e único, olhar a sua figura nas águas cristalinas e admirar a própria pose. Caminho na lonjura da planície para que o meu porte não seja escondido pelas árvores, por isso procuro as plantas mais rasteiras, que se dobram à minha passagem mas disfarçam o meu corpo voraz. Inspiro fundo, avolumo o tórax, engrandeço a juba, faço irromper do centro de mim mesmo um urro egocêntrico, respiro todas as emoções da paisagem mas apenas tolero os meus sentimentos. Parto na busca da presa, ora veloz ora camuflado, ora agressivo ora sedutor. As minhas presas são os olhares dos outros, que me observam de todos os lados da paisagem, avaliando os movimentos do meu peito, a firmeza dos meus gestos, a finalidade do meu caminho. Também eles querem fazer de mim a presa dos meus olhos, o alimento da sua vaidade. Procuram nas minhas expressões fraquezas e forças, dissimulam-se nas sombras e nas ervas, tentam enganar-me e seduzir-me.

Às vezes sinto-me frágil. É tão fácil cair, falhar, conhecer o ácido da derrota, ser alvo do menosprezo dos outros, do olhar complacente ou trocista, arrogante ou vencedor. Eles são o meu espelho, o meu palco, o filme em que me torno personagem central, são eles que certificam a construção da minha ordem, dos meus sentidos, do meu mundo.

Há momentos em que a minha parte ruminante, puro instinto, cheio de pulsões fortes e repentinas, sem qualquer vislumbre de pudor pelo cumprimento dos caminhos ancestrais da manada, se depara com a faceta de leão, altiva e poderosa, cheia do desejo de afirmação, equilíbrio de corpo e de juba. “Poderosas são as minhas entranhas, as câmaras onde armazeno os ciclos dos prazeres”, diz o touro. “Mais potente sou eu, que me afirmo nas garras e no tronco e na juba e nos olhares dos outros”, diz o leão.

É nesta altura que surge a águia. Eleva-se sobre o ruminante e o felídeo, paira acima dos limites do horizonte, vê o que ficou para trás e o que se aproxima e avisa os dois animais terrenos: “Cuidado bovino, refreia os impulsos, não esqueças, perdido no teu estômago faminto, cheio de locais obscuros e de labirintos, o risco da tua inconsciência. Cuidado, felino, a vaidade é muita mas o tempo é longo, cheio de voltas e reviravoltas, e o mundo é infinito e bem cruel. Um sem o outro, nada sois, pois estais presos pela gravidade à terra lamacenta. Aqui do alto, avalio a proximidade e a distância, oriento-me pelo brilho de infinitas constelações, aguço o olhar e pico sobre a terra, liberto as asas e alcanço as estrelas.”

Isto afirma a águia, na sua leveza equilibrista, controlando os ventos, o frio e o quente, a luz e a sombra, o bem e o mal, a causa e a consequência. E então une-se ao touro e ao leão e torna-se a cabeça deles, os seus olhos e o seu espírito. O touro fornece as patas que pisam a terra, os músculos brutos, o sangue e as emoções. O leão dá o eu, a consciência da caça, a boa imagem e o sentimento. E a águia voa nos dualismos da incerteza, disseca o panorama abaixo dela, respira os altos cumes e os abismos.

Assim nasce a esfinge, o ser composto, o monstro homeostático. Unida pelas três sabedorias, a esfinge coloca aos animais que chegam o seguinte enigma: “Qual é o ser que é ao mesmo tempo touro, leão e águia?”. Mas, por mais que eles olhem, apenas vêem o mundo simplificado, apenas acedem ao touro, ao leão ou à águia e nunca ao organismo. Por isso todos garantem que tal criatura não existe. E é então que o monstro se transforma em serpente e devora todos os que desconhecem a sua presença.  

Enquanto ofídio, a esfinge transporta uma espantosa energia, propaga-se magneticamente até ao horizonte, Disfarça-se, no seu percurso ondulatório, mas inocula o seu poder no touro, no leão e na águia, de tal modo que nenhum deles consegue viver sem ela. Pois a serpente diz: “Eu venho dos confins da terra, sinuosa e latente, irrompo num ataque súbito e injecto a minha sabedoria de milénios, o meu veneno e o meu poder. Bloqueio as comunicações e toda a vida para, as células perdem a vontade de cooperar, e eu estou sempre aqui, olhando para lá do bem. Rastejo em busca do touro e do leão, mas nenhum deles me controla, pois enrolo-me neles, num abraço inflexível, e eles ficam paralisados pelo meu poder. Só a águia me domina, paira nas correntes celestes, segue o meu rasto com olhos infalíveis e, quando vê que o meu aperto é demasiado para o ruminante e o carnívoro, pica em direcção ao solo, às vezes leva-me a pele, que abandono para me renovar, outras eleva-me inteira aos píncaros ventosos, e aí me devora.”

Assim fala a serpente, que sai do bico da águia, que controla a paisagem, que é pasto do touro, que alimenta o leão. Todos se fundem no mesmo organismo e formam o mais complexo dos equilíbrios. No touro, impera o reino da necessidade, no leão, inflama-se o princípio da vaidade, na águia voa a sabedoria e na serpente lateja a renovação.