A CHEGADA DE MARDUKE
1
A chegada de Marduke
Marduke foi o primeiro a chegar.
Veio com os seus cavalos brancos, os seus servos tisnados e a sua espada cintilante.
O vento soprou, raivosamente, no solo árido do planalto, tentando demover aquele invasor tenaz, que vinha desafiar séculos e séculos de solidão, séculos e séculos de poderio ilimitado sobre a capacidade de existir.
Ali, nenhuma erva lançara semente, nenhuma flor alegrara a paisagem agreste, nenhuma árvore ou animal fora suficientemente forte para resistir à varredura impiedosa dos ares, que envolviam tudo nos seus abraços e rodopiavam, numa dança infinita, lançando toda a matéria contra os fundos precipícios laminares que escoravam o planalto.
Do cimo da montada, Marduke perspetivou aquele cenário tão bravio, para onde o tinham conduzido os seus caminhos descontentes e as suas miragens indizíveis. Nenhuma palavra conseguira, alguma vez, descrever os seus sonhos ou delimitar os projetos que lhe davam impulso. Fora esgotando todos os espaços, esvaziando de sentido todos os sentidos, deslocando mais e mais os limites, até se encontrar face a face com a rotura. Ali estava ela, essa rotura que ele tão firmemente procurara, obsessão de mil anos, meta de uma fome inextinguível. Ali começava o futuro de Marduke, e também o presente e o passado, pois só agora o tempo ganhava vida e significação, só agora o tempo se tripartia, fazendo das vísceras o passado, dos membros o presente e do coração o futuro. Tudo estava por fazer, e tanto bastava para que a ação se consumasse e a terra se contorcesse nas dores do parto.
As poeiras assaltaram a comitiva, manejadas por aquele vento enraivecido, que construíra o seu império de nada sobre o nada. Metralharam os olhos, fustigaram os corpos, rasgaram as carnes das montadas, rojaram-se na superfície inóspita, rodopiaram sobre as cabeças dos invasores...
Marduke permaneceu estático. Desceu os olhos aos corpos dos servos, aqueles servos que eram cobaias do seu projeto e da sua inquietação.
Porque o seguiam? Porque lhe obedeciam? Gastavam a carne e a existência na improlífica tarefa de o escoltar, anos e anos arrastavam os pés ao compasso das ordens, como se a sua única razão de existir fosse a obediência. Não transparecia qualquer sentido ou inteligibilidade nos seus atos, como se os gestos, os ruídos, os movimentos e a própria sombra comungassem do mais puro dos automatismos e da mais persistente das cegueiras. Tal como a estrada se prolonga e ganha o espírito no destino de quem a pisa, assim eles se estendiam, ininterruptamente, sob a diligência de Marduke. Nenhuma censura abandonava os lábios rudes, nenhum descontentamento espreitava do fundo dos olhos, agora mesmo estavam ali, como espantalhos, açoitados pela tormenta, no centro daquela paisagem de inferno, esperando o sinal que os libertasse da espera e os escravizasse numa nova espera.
Marduke lançou os olhos para lá do planalto, trespassou as poeiras, transpôs os precipícios, furou as brumas do tempo e recordou o instante em que descobrira a terrível tarefa de ser livre.
Encontrara-se perante seu pai, Ea, o mais amado dos progenitores. O pai olhara-o por entre as pestanas milenares, com aquelas pupilas que tinham presenciado todos os antagonismos. Na infinita tela das suas vivências, projetavam-se a fetidez da miséria, os beijos da esperança, os tambores das vitórias, os corcéis da morte, a euforia das festividades, a angústia dos anos... Um rio de sangue caudaloso irrigava o infinito campo das suas memórias.
- Está na hora de te dar a consciência da minha herança, dissera-lhe Ea, pois é apenas de uma consciência que se trata. Por isso esta é a mais leve e a mais copiosa das sucessões. Aqui, visando a infinidade das luzes que iluminaram o meu percurso, carrego-te com o fardo da minha responsabilidade, da minha obsessão: é necessário que abandones o passado, porque o teu futuro está construído no vazio. Toma os meus servos e parte, eles serão teus serviçais como foram meus, acompanhar-te-ão, movimentando os ossos roídos pelo desdém. Eles intuem o caminho, mais do que o sabem, tu nem o sabes nem o intuis. Vai, eu desintegrar-me-ei para partir contigo. Somos carne da mesma carne, onda da mesma onda, viajaremos pelas mil rotas do universo, tu o meu passado, eu o teu futuro, e mesmo que não entendas a minha voz ela estará sempre contigo, murmurando-te segredos de ambição, dedilhando-te as cordas da existência. Escuta o clamor que se levanta das profundezas do teu rumo: sou eu que já morro, és tu que já nasces, e na comunhão da vida e da morte perpetua-se a herança, a eterna busca. Vai, passarás magníficas cidades e alegrarás o coração todas as vezes que, sobre a linha do horizonte, um clarão de existência inundar os teus olhos de esperança. Mas ai de ti se o coração te fraquejar, se as articulações desejarem acomodar-se à ilusão daquilo que se oferece, pois nada se oferece, tudo é roubado ou conquistado. Torrentes de sangue cimentam a argamassa de qualquer construção, mas o sangue está cheio do ciclo do absurdo, porque o seu devir é uma crua e interminável mudança de estado, ora se liquefaz ora solidifica, na mais pura das inconsequências, por isso as obras do seu cimento são efémeras e abundantes, erguem-se em cada canto da vida, do mais populoso ao mais ermo, levantam-se no ímpeto de um grito e desabam na força de outro grito. Mas àquele que edifica a sua esperança sobre o nada, só a esse, é permitido fugir ao ciclo do absurdo, aspirar à mágica do novo, ter o poder de decorar o alento, ele apenas depende de si próprio e do tempo, e por mais traiçoeiro que o tempo seja, nunca realiza sozinho as próprias traições, necessita sempre da ajuda do atraiçoado. É certo que esse dia acaba sempre por chegar, a hora em que o tempo e a vítima se juntam na conspiração mais íntima e bizarra, e aí todo o sangue da vítima se debate nos abraços do tempo, estrebucha na sua própria desgraça. E pergunta o atraiçoado “Porque existe o tempo?”, e responde o tempo “Porque existe a vítima”, e ambos se concentram na mórbida tarefa de descarnar o esqueleto da fé. São horas de rotura e de dor, mas delas renasce a nova caminhada sobre o arame, o risco de tombar é sempre enorme, o precipício é fundo e não há rede, mas não existe o nojo dos rostos expectantes, pois a queda solitária tem o seu próprio zelo e a sua própria glória. Ai daquele que tropeça nos olhos dos outros, que se insinua, como uma bailarina, às pupilas alheias, que, quando vence, clama pelo outro e, quando tomba, berra pelo outro, a alteridade é o pior dos ácidos, destrói as fibras e as ossadas e ostenta os resíduos num sorriso irónico. Aquele que edifica o seu percurso sobre os olhos do vizinho sente os seus esteios derrocarem sempre que o seu vizinho pestaneja. E que acontece se ele esfrega as pálpebras? Poderás perguntar, na candura da tua pouca história, pelo ser leal, fraterno e filantrópico. Mas a lealdade é uma manha, a fraternidade uma artimanha e a filantropia uma raposa, pois não existe aldeia que não queira ser cidade, cidade que não queira ser nação, nação que não queira ser império. Toma os meus servos e parte. Eles não constituem qualquer perigo: moldei-os de matéria indiferente e soprei-lhes o fôlego da servidão. São cachorros com imagem de homem. Fazem do teu destino o seu destino, do teu fôlego o seu prazer e, quando as suas línguas pendentes escorrem saliva, são rios de absurdo que drenam as planícies da vida.
Marduke passou a mão direita pela testa e pensou que talvez ali, sobre aqueles terrenos sáfaros, escorados por barrancos, conseguisse destruir os ciclos, cortá-los com uma machadada eterna, num golpe que fizesse estremecer o universo inteiro.
Talvez ali brotasse um começo sem retorno e a vida pudesse, finalmente, cantar o seu triunfo, saltar todos os abismos e rir, com uma gargalhada limpa, dos estratagemas do tempo.
Talvez ali se encontrasse a nascente daquele caudal cuja visão perturbara, durante milénios, os sonhos de Ea e dos seus ancestrais.
Talvez estivesse, ali, o cimento que faltara a todas as gerações, para erguerem os alicerces daquela cidade mítica, eterna, luminescente e harmoniosa, onde cada momento seria irreversível, uma metrópole que irradiasse um fluxo contínuo e nunca igual, que se evolasse como um viajante sem saudades ou um pássaro selvagem finalmente liberto.
- Descarregai as montadas e começai já a trabalhar - ordenou Marduke. - Arrancai as pedras, escavai fundações, levantai paredes, temos de construir a cidade antes que o frio espacial consuma os nossos corpos. O cansaço apodera-se dos meus músculos. A seguir ao cansaço vem o tédio e a seguir ao tédio a deserção, e nas catedrais do tempo os sinos tangem pelos desertores. Trabalhai, que o vosso suor é uma promessa, talvez seja o último dos alentos.
Ficou a vê-los, do alto da montada, nos preparativos da cidade.
Imaginou Ea, na sua infinita sabedoria, sentado a seu lado, mostrando surpresa e regozijo, louvando a grandeza da sua prole, atiçando o sagrado fogo do orgulho. O grande sábio, conhecedor de todas as palavras e de todos os discursos, não lhe quisera revelar os maiores mistérios. Talvez nem ele mesmo os tivesse decifrado.
Ea, seu pai, senhor de infindáveis metáforas, desejara ver o filho ao longe, a dissolver-se na linha do horizonte, deixando para trás um rasto de desejo, a seta de uma miragem, a aura de uma procura. A dor apossara-se de todos os seus gestos, mas permanecera irredutível: urgia seguir, na busca de todos os caminhos. A mão com que acenara, na hora da partida, desfalecera na maior das solidões; todo o seu infinito saber se desordenara nas vagas do afeto. As águas trouxeram as suas lamentações e as noites a sua tristeza.
Sobre a sua montada, Marduke dirigiu o trabalho dos servos, planeou a cidade sem qualquer hesitação, como se aquele projeto fosse a única certeza.
Aquilão, o vento, soprou raivosamente, atiçando o desânimo, gemeu no gume da espada, esfacelou-se contra as fundações. Correu noites e dias, na sua raiva e no seu desespero. Por fim parou, estava vencido, susteve-se, olhando os traços do invasor, e concluiu nada poder fazer. Marduke parecia nem dar conta da sua existência.
Aquilão desistiu, voltou as costas àquele lugar inóspito, onde durante tantos séculos fizera imperar a sua cólera, e partiu. Os servos aliviaram os corações, ouviram-no derrapar num cume longínquo, mas Marduke, o Guerreiro, nem se apercebeu de tal vitória, tão concentrado estava nos edifícios.
- Quero uma grande praça, uma praça central, - disse ele aos operários. - E quero luzes, muitas luzes, para que o sagrado clarão do nosso convite possa ser visto de todas as distâncias. Construiremos a mais excelsa das utopias, com a minha sede inabalável, os materiais que recolhi, os conselhos de Ea e a vossa dedicação.
Os servos desdobraram-se, multiplicaram os membros e os ânimos para a energia do trabalho, erguendo aquela obra magnífica, que iria maravilhar todos os viajantes, aquela cidade onde Marduke talvez encontrasse o seu princípio e pudesse fugir à angústia do tempo.
2
Odin
O tempo trouxe Odin, o Barbudo, e as suas sete filhas.
Vinham de longe, carregados de espaço e de poeira cósmica. Esgrilaram o esplendor daquela cidade sobre o planalto e pensaram que talvez ali encontrassem aquilo que procuravam. Mas, quando Marduke os inspecionou e quis saber o que procuravam, não conseguiram responder.
Marduke recebeu-os com curiosidade. Olhou a pele rosada das filhas e a face curtida do pai e achou que se completavam. E disse-lhes:
- A minha casa está aberta aos viajantes e a todos os estrangeiros. Não cobrarei impostos nem implantarei restrições severas. No entanto, exigirei um pequeno pagamento para permitir a estadia. Narrar-me-eis, pouco a pouco, que viagens percorrestes e que projetos vos animaram. Todos os dias esperarei Odin para que satisfaça o meu desejo. Entretanto direi aos meus servos para vos darem guarida no extremo norte da urbe e vos tratarem como se da minha prole se tratasse.
Odin desconfiou das facilidades concedidas. Tinha pedido entrada em muitos reinos e nunca deparara com tal atitude. Desenhou a sua casa no local estabelecido. Fez uma grande varanda, onde as filhas se expunham aos olhares dos cidadãos: debruçavam-se e deixavam os seios balancear e tremer por entre os vestidos entreabertos. Os cidadãos espreitaram-nas e gostaram. Vieram, com assiduidade crescente, contemplar os seios das virgens.
Odin cumpriu o prometido. Todos os dias visitou Marduke, narrando as histórias dos rumos que traçara.
Noutras épocas cavalgava por todos os caminhos, com o seu capacete de oiro a refletir os raios estrelares e o pavor dos inimigos. A simples intuição da sua proximidade tornava os adversários lassos e impotentes.
Outrora protegera-se com uma armadura cintilante, onde nenhuma arma penetrava, e armara-se com a sua espada, que destruía hordas inteiras com um só golpe. O seu cavalo, Sleipnir, ultrapassava os mais portentosos obstáculos e devorava todos os abismos, sempre mais rápido que a luz por sobre as terras e os mares.
Do seu palácio inigualável, Odin ditava as leis que governavam as nações. Ali chegavam, constantemente, os guerreiros mortos nos mais renhidos combates; chegavam aos milhares, transpunham as infindáveis portas dos imperiais aposentos, festejavam as vitórias edificadas sobre as suas mortes, jogando ao ritmo das adagas e comendo suculentos manjares.
Em devido tempo tinham acorrido às exortações e pelejado pelas mais desinteressadas causas, erguendo as armas com o ímpeto da coragem, num pulsar heróico e sem quebranto. Nenhum se negara ao chamamento de Odin, o guerreiro, o poeta e o legislador dos mundos. Davam às suas causas o preço irrisório das vidas e partiam para as batalhas com o fervor de quem nada tem a perder e tudo quer ganhar. O sentido das suas existências estava no mais puro movimento e nas mais emblemáticas ações.
Derramavam o sangue em mares turbulentos, copiosos caudais. Mas nenhum golpe os contentava, nenhuma vitória os preenchia, nenhum império os reformava. Os cânticos de Odin apossavam-se deles, erguiam-se nas horas mais tristes, nas noites mais frias, no auge das refregas. O grande cântico da glória reduzia a pó os prazeres mais singelos, as obrigações mais caseiras, os objetivos mais terrenos. Voavam no sonho supremo, no fogo inextinguível da vontade, na angústia incontornável de reduzir a vida à simples vida.
- Toda a vastidão do meu palácio - dizia Odin - era iluminada pela luz que irradiava do meu elmo, da minha couraça, da minha espada e do meu riso. Todos os dias, enviava o pensamento e a memória através dos mundos. Seguia-os a minha vontade, incitando-os com palavras fortes. Eles ordenavam os espaços e traziam-me notícias da paz e da guerra, da vida e da morte, da luz e das trevas, da coragem e do medo, do belo e do medonho, da esperança e do desânimo. “Em que local vive a esperança?” Perguntava eu à memória. E ela respondia-me: “Temo que em parte nenhuma”. Então eu enviava a minha vontade e o meu pensamento em todas as direções, para que semeassem a esperança. Eu próprio os acompanhava, pois o meu cavalo tornou-se a minha própria vontade e a minha vontade o meu próprio cavalo. “Que equilíbrio existe entre a vida e a morte?” Perguntava eu ao pensamento. E o pensamento respondia: “Temo que a morte pese mais”. E então eu, o meu cavalo e a minha vontade acorríamos a restaurar o equilíbrio. Porque apenas existia um imperativo no universo: que nem a vida triunfasse sobre a morte nem a morte triunfasse sobre a vida.
Dias e dias Marduke escutou aquelas histórias bizarras. Nunca interrompeu as narrativas. Olhava-o calmamente, deixando as palavras brotar por entre as longas barbas esbranquiçadas.
Odin, o excelso amante! Por toda a parte as mulheres lhe ofereciam as carnes delicadas. Semeara a sua descendência entre os lares dos inimigos e dos aliados, entre os mortais e os imortais, entre os anões e os gigantes. Para seu sossego, fechara os ouvidos a um milhão de filhos que lhe reclamavam a paternidade.
Pelos seus poemas se aconselhavam os povos, até às regiões inexploradas, por eles se ordenava a moral e a justiça, por eles aprendiam os mortais a curar as doenças, a seguir os costumes, a afugentar os perigos, a falar com os mortos e a dominar as tempestades. Com eles tudo comandava: as formas e a matéria, as carnes e os espíritos.
Mas chegou o tempo em que o seu orgulho esmoreceu, a sua memória estiolou, o seu pensamento foi mais fraco e a sua vontade criou limites. Conheceu as angústias do tempo!
- Até os próprios deuses envelhecem e eu, que passara milénios na inconsciência, encontrei-me, um dia, face a face com a angústia. “Que me acontece?” Perguntei. “A mim, que pensava conhecer as brumas da existência. Estou velho, velho de corpo e de espírito, os anos entorpecem-me as pernas, turvam-me o olhar. Atento no passado e sinto um aperto na garganta, uma profunda nostalgia apodera-se dos meus dias. Nas visões da noite chegam corcéis medonhos, que me atacam e me enchem de angústia, corcéis negros e de olhos rubros que se dissipam nos frémitos do meu incómodo. Arrasto-me, sonâmbulo, pelos incontáveis corredores do meu palácio, perante a estupefação dos heróis. De dia tenho o pensamento fraco e a vontade cativa, quero visar o rumo do futuro, mas uma névoa intransponível avança dos confins dos abismos e obriga as pálpebras da minha intuição a fecharem-se, unidas por um cansaço irresistível.” Então resolvi partir. Entreguei o palácio ao governo das minhas filhas e cavalguei no meu cavalo Sleipnir, levando a minha memória ensombrada, o meu pensamento extenuado e a minha vontade enfraquecida.
Odin caminhara sem descanso nos percursos mais árduos e habitara as moradas mais sombrias. Levara o elmo menos refulgente, a couraça muito permeável e a espada menos lancinante. Os trilhos estavam cheios de rumores e cochichos: “Como pôde o maior dos deuses tornar-se um vagabundo? Como se reduz a nada o maior dos poderes?”. Mas Odin fechou os ouvidos e continuou, sem trégua, a procura da fonte da verdade.
Um dia, chegou ao bosque onde habitavam os demónios das águas. Esquecido do seu remoto orgulho ergueu a voz, outrora estrondosa, e pediu ajuda. Então Mimir, pai dos demónios, riu-se-lhe na cara.
- Que nos importa a tua decrepitude, Odin? Tiveste o teu curso, a tua história. Já foste poderoso, brincaste com a vida e com a morte, jogaste o infindável jogo do poder. Agora o tempo vem pedir-te contas, vem restabelecer o equilíbrio.
E durante nove dias Mimir gargalhou das desgraças de Odin. E durante os mesmos dias Odin vociferou, arrancou os cabelos e odiou a existência. Por fim tomou uma decisão: sacrificar-se à sua dignidade, aniquilar-se, ultrapassar num ápice a agonia do tempo.
Ordenou à memória, ao pensamento e à vontade que o deixassem. Depois dirigiu-se à árvore de cujas raízes os demónios retiravam o líquido para as libações, subiu-a, pendurou-se no ramo mais alto e ficou imóvel, até que nenhum sopro de alento saísse dos seus lábios.
Mimir exasperou-se e injuriou-o:
- Odin, maldito sejas! Tornaste-te um espantalho. Agora nem os pássaros vêm animar a floresta nem eu posso fazer libações sob a árvore!
Porém, vendo que nada conseguia, o demónio das águas retirou o sangue morno de Odin, juntou-lhe leite de cabra e mel, misturou tudo com a seiva da árvore e deu o elixir a beber ao moribundo.
Então Odin ressuscitou, ganhou de novo o sopro da vida, as carnes revivesceram, as formas ajustaram-se e sentiu que regressava o portento da sua voz. Saltou para o solo, chamou a memória, o pensamento e a vontade, montou o seu cavalo e disparou a galope, deixando Mimir a injuriá-lo.
Enquanto percorria a distância que o separava do palácio, as suas risadas cruzaram os ares, sobressaltaram os despenhadeiros, inquietaram os espaços, rasgaram as sombras e afugentaram os demónios que nelas habitavam.
Odin regressava! Mas vinha transtornado. Entrou na sua morada e viu que o amplo salão estava deserto, aquele salão antes cheio de guerreiros, de heróis que estabeleciam o equilíbrio entre a vida e a morte. No centro, as filhas mostravam os corpos e massajavam os seios com indolência.
- Onde foram os guerreiros? - Perguntou Odin.
Após a sua partida, disseram as filhas, os guerreiros tinham formado sete batalhões e tomado cada uma delas como padroeira. Travaram sangrentos combates, apenas interrompidos para se alimentarem. Bebiam o sangue dos feridos, mas com o correr do tempo todos estavam feridos. Beberam-se uns aos outros até ficarem exangues. Do centro do átrio, sobre um palanque escorado por adagas, as virgens incentivavam-nos, soprando-lhes a coragem nas veias. Um único combatente restou, pelejante ao serviço da causa de Ibra, a mais velha das irmãs. Agradeceu o triunfo, mas logo tombou, também ele exangue.
– Que faremos com eles? – Questionaram-se as virgens.
Como Odin não estava ali para os reanimar com as suas fórmulas mágicas, os corpos entraram em putrefação. Então elas chamaram os abutres, para que levassem dali as carnes e as ossadas.
– Não nos censures! – Rogaram elas a Odin, quando este chegou.
O supremo pai olhou-as, com aqueles seus olhos que descobriam todos os segredos. Ali se bamboleavam os frutos do seu sémen, lançados no caminho da desordem. Não, ele não as podia censurar, porque já nenhuma censura interessava, nem a ordem, nem os heróis.
O elixir tinha produzido nele o efeito de uma grande bebedeira, sentia os membros estalando de vigor mas agia como se estivesse ébrio. Na verdade, apenas interessa a ordem para quem vê território a defender. Ora o território de quem regressa da morte é exíguo como a sombra. Copiosas tempestades de ambição, incontáveis miragens de valores catapultam os vivos. De poucas coisas para muitas coisas, de pequenos bens para grandes bens, assim caminham, impacientes, desmesurados, buscando a grande fonte que inundará, numa torrente imparável, as gargantas com todas as satisfações do mundo.
Mas o drama de qualquer sede está na contingência da fonte; e a tragédia de qualquer fonte está na sua multiplicidade e infinitude. Pois o desejoso, cansado do caminho, seco das poeiras, lança os sentidos à frescura da fonte e exclama: “Eis o meu destino!”. Mas logo as águas se lhe tornam salobres e perdem a frescura e perdoam a sede. E deve recomeçar a caminhada, na busca incessante de uma outra nascente. A angústia dos humanos reside apenas nisto: na fugacidade de todas as fontes. Por isso a ordem legitima o território e o território valida as ilusões: nele, esperam os vivos encontrar a fonte.
Quem regressa das dunas da morte perde a sua alma sedentária. Assim, Odin ordenou às filhas que abandonassem o palácio e iniciassem, com ele, a grande viagem.
Ibra mostrou surpresa e desagrado:
- Com que fundamento nos empurras para o incerto? Como podemos abandonar os bens mais valiosos a troco de coisa nenhuma?
Odin não soube responder. Apenas disse que sentia no coração o desejo inadiável de partir.
- Vamos, apressai-vos! Levai os tecidos mais fortes, porque o percurso será longo, não sei mesmo quando terminará.
Depois atrelou o veículo ao seu cavalo e partiram velozes.
Caminharam sem paragem até ao bosque de Mimir, o demónio das águas.
Odin disse às filhas que chamassem por ele. O demónio banhava-se nas águas límpidas. Ouviu os gritos e emergiu. Então a espada cintilante do pai das virgens desceu veloz e decepou-lhe a cabeça fulva.
- Mimir, demónio ingénuo! Tu, que conheces os segredos da ressurreição e foges ao tempo com as tuas fórmulas mágicas, não conseguiste adivinhar o gume da minha espada! De ora em diante seremos companheiros inseparáveis, a tua cabeça viajará comigo por todos os trilhos e revelar-me-á os teus segredos.
Odin pendurou a cabeça de Mimir num mastro que se erguia no centro do carro. Depois encheu um barril com os elixires dos demónios e continuou viagem. E ria, como um louco, perante a surpresa das filhas.
Muitos séculos os levaram de cidade em cidade e de mundo em mundo, naquela rota interminável.
Ibra e as irmãs choraram amargamente a loucura do pai, mas o choro não surtiu qualquer efeito. Acomodaram-se ao desconforto das viagens e aperfeiçoaram o ritual lânguido de massajar os seios. Embora sofressem a ação de muitas intempéries e o desgaste dos caminhos agrestes, a sua pele continuou macia e rosada.
Certo dia, Odin acordou sobressaltado por vozes e risos. Quando iniciara o sono não vislumbrara qualquer ser vivente nos arredores. Agora, à volta do carro, espalhava-se uma multidão que ria e bajulava. Semideitadas no veículo, as filhas procediam ao seu ritual de massajar os seios. Existia ali vida de todas as espécies. Tinham transmitido uns aos outros a notícia das virgens e chegavam, numa fila inesgotável, que rodeava a carroça e se plantava de olhos fixos nas jovens.
Ibra desafiara a vontade do pai. Durante o seu sono reparador enviara mensagens pelas brisas, sussurros cativantes que ondularam para além das colinas, em todas as direções, penetraram nos ouvidos e nas almas e despertaram o desejo incontrolável de encontrar a origem.
Sempre fora potente o feitiço de Ibra, ganhava na mágica dos encantos a todas as irmãs. Nenhum herói resistira aos seus apelos, nenhum recusara jamais combater pela sua causa. O fascínio dos seus gestos introduzia-se nos seres e tornava-os vontade da sua vontade; na voz firme e decidida exaltava os corações mais tranquilos.
Ao compreender o ocorrido, Odin fez estrondear a sua gargalhada. Outrora, empunharia instantaneamente a sua espada e aniquilaria tudo de um só golpe. Mas agora, conhecera as malhas do tempo e bebera o elixir dos demónios. Já não possuía a certeza inabalável de quem legisla, ordena e pune. Agora estava ébrio e não conseguia estancar o riso. Por isso falou à multidão:
- Também eu gosto das carnes rosadas e frescas e não consigo ver os seios de uma virgem sem que me debata entre mil pulsões incontroláveis. Por isso as trouxe, a fim de purificar os vossos instintos cobertos de poeira, os músculos enfraquecidos pela abstinência, o cio carregado de humores rançosos. Bebei um copo do maravilhoso elixir do meu barril e ganhareis mais força e sentimento. Depois, estas carnes serão vossas.
Odin mergulhou a cabeça de Mimir no barril, segredando-lhe palavras estranhas. Depois deu a cada pretendente uma pequena taça do elixir.
E então uma espantosa metamorfose ocorreu na multidão, pela mágica dos demónios: todos se transformaram em graciosas donzelas.
E Odin tomou o lugar das virgens e fecundou a multidão.
Quando se sentiu cansado afugentou tudo o que existia em redor e, voltando-se para as filhas, chicoteou-as com raiva. Mas ao ver o sofrimento delas chorou amargamente o ocorrido. E lamentou-se:
- Porque me descontrolo!? Porque agrido a carne da minha carne e não tolero a menor impertinência?! Os ventos trazem-me a loucura e ameaçam destruir o meu lar vagabundo. Nada do que faço é claro e todas as vias que percorro me levam ao incerto!
E, pedindo complacência às filhas, fustigou o cavalo e recomeçaram a viagem sem meta.
Marduke ouviu Odin, o Barbudo, contar incríveis histórias, rindo estrepitosamente a cada passo. E refletiu longamente naquelas narrativas, tentando encontrar os indícios de uma luz vindoura, lições para a construção de um novo tempo.
- Onde está a cabeça de Mimir? - Perguntou um dia.
Ainda lá estava, pendurada no carro, balouçando no mastro em que tinha sido pendurada pelo algoz. Marduke sentiu o ardor do interesse para com a mágica do demónio das águas.
- Consegues falar com ela?
Odin disse que não. Pouco a pouco aquilo que tinha sido uma joia preciosa, que permitia escapar, com as suas fórmulas, à angústia do tempo, tornara-se apenas um troféu. Mimir silenciara-se cada vez mais e acabara por emudecer.
- Ofereço-ta. Leva-a para o teu palácio - disse Odin. - Confesso que não consigo dormir tranquilo com os seus olhos a fitarem-me o sono. Talvez ganhe de novo o discurso e te revele coisas que a mim já não interessa conhecer.
Marduke guardou Mimir no seu palácio. Colocou-o sobre uma almofada de veludo, de modo que pudesse olhar a praça central. E ficou muitos dias e noites a observá-lo, à espera de um sinal desvelador.