a boca e a ilusória solidez das palavras

23-02-2018 00:08

 

Era uma vez um homem que falava sem pausa, à janela de todos os ouvidos que encontrava, como se as palavras fossem o caminho e o destino dos outros estivesse em percorrê-las. Os bichos ficavam atarantados e fugiam para não o escutarem mas os homens, que eram mais artificiosos, colocaram portas seletivas nas orelhas e apenas lhe deram o benefício da proximidade. Sem consciência da sua solidão, ele continuou a distribuir as frases como se fossem genes, multiplicava-as e fortalecia-as com a motivação de quem deseja criar o universo. Na sua infertilidade, sentia-se a mais prolífera das criaturas.

Um dia deus, que era tudo à volta, sensível e não sensível, e até coincidia com o hipertrofiado falador, apiedou-se daquela ingenuidade, tocou-lhe à campainha da consciência e disse:

— Porque degradas a energia que consomes em palavras que ninguém escuta? Não sabes o sentido da boca primeva? É uma incomensurável vontade de absorver o mundo, um rosto-todo-abismo na voragem de uma garganta abissal, um fogo pronto a alastrar por tudo quanto é corpo. O fogo dessa boca é a simples transferência de coisas ínfimas e insignificantes, mas a grande ilusão das criaturas está na percepção da solidez e as palavras são construídas por esse engano. As bocas foram geradas para engolir, para puxar a imensidão das insignificâncias no irresistível sentido da fome. Porque queres tu agora, como muitos outros, cheio da ilusão da solidez, transformar o maravilhoso sabor da privação no artificioso excesso do falar?

Ao sentir o pensamento inefável de deus, o homem tomou consciência de que tinha estado sempre a usar a boca em sentido contrário. Mas ficou confuso sobre o caminho a percorrer na sua existência.

— Como devo então utilizar a boca? — Perguntou a deus.

— Sente sempre a fome, funde-te no amor e, se tiveres palavras, não as desperdices, engole-as como se fossem fogo criador.