A água da minha vida

18-05-2014 23:47

A ÁGUA DA MINHA VIDA

A água da minha vida aconteceu há muito 

num rio a deslizar por entre milheirais

 guardado por latadas e salgueiros

 murmurejando uma conversa amena

suavizando o badalar dos sinos 

refrescando os aromas dos campos 

correndo muito acima do nível da terra.

A água da minha infância está toda nesse rio

que para mim corria até ao céu

e levava os meus barcos de papel

cheios de piratas e de heróis

saídos do estaleiro dos meus sonhos.

Nas tardes de verão

descia até ele sempre a subir

procurava uma sombra

segurava uma cana e lançava o anzol

sem qualquer isco

só para fingir

e os peixes apareciam curiosos

e às vezes as escamas reflectiam o sol.

Os gafanhotos

caíam na corrente na boca das trutas

as rãs conversavam na frescura

pequenos sons emergiam da água

e o tempo

ficava suspenso

até que as mãos do entardecer lhe mostravam as horas.

Às vezes

lia um livro sentado na margem

com pequenas pausas para ver os peixes

e os reflexos

e os barcos

e os projectores de aventuras.

Numa tarde quente

desci como sempre subindo até ao rio

por entre o cheiro da terra e do milho

mas ao chegar

não me sentei nem preparei a cana

nem lancei os meus barcos de papel

nem vi os reflexos das escamas

porque na água

estava um corpo de mulher ainda jovem

inanimado

os cabelos dançando

os olhos dirigidos para o céu

o seu lugar de redenção

Ainda hoje

vejo o rosto imerso na água límpida

sereno e perfeito

como o dos que alcançam tudo o que desejam.

Corri o mais que pude

para que alguém a fosse retirar

ouviram-me e chegaram

estenderam-na sobre as ervas

parecia divina

tentaram salvá-la sem qualquer resultado…

 

Chamaram o padre e quando este chegou

não a benzeu nem rezou orações

apenas correu para o seu corpo inerte

lançou-se sobre ele

e cobriu-o com o seu desespero

e todos ouviram a sua voz rouca

sair em golfadas do íntimo da dor

e dizer ininterruptamente

perdoa-me, perdoa-me.

António Costa 12/12/2010