A água da minha vida
A ÁGUA DA MINHA VIDA
A água da minha vida aconteceu há muito
num rio a deslizar por entre milheirais
guardado por latadas e salgueiros
murmurejando uma conversa amena
suavizando o badalar dos sinos
refrescando os aromas dos campos
correndo muito acima do nível da terra.
A água da minha infância está toda nesse rio
que para mim corria até ao céu
e levava os meus barcos de papel
cheios de piratas e de heróis
saídos do estaleiro dos meus sonhos.
Nas tardes de verão
descia até ele sempre a subir
procurava uma sombra
segurava uma cana e lançava o anzol
sem qualquer isco
só para fingir
e os peixes apareciam curiosos
e às vezes as escamas reflectiam o sol.
Os gafanhotos
caíam na corrente na boca das trutas
as rãs conversavam na frescura
pequenos sons emergiam da água
e o tempo
ficava suspenso
até que as mãos do entardecer lhe mostravam as horas.
Às vezes
lia um livro sentado na margem
com pequenas pausas para ver os peixes
e os reflexos
e os barcos
e os projectores de aventuras.
Numa tarde quente
desci como sempre subindo até ao rio
por entre o cheiro da terra e do milho
mas ao chegar
não me sentei nem preparei a cana
nem lancei os meus barcos de papel
nem vi os reflexos das escamas
porque na água
estava um corpo de mulher ainda jovem
inanimado
os cabelos dançando
os olhos dirigidos para o céu
o seu lugar de redenção
Ainda hoje
vejo o rosto imerso na água límpida
sereno e perfeito
como o dos que alcançam tudo o que desejam.
Corri o mais que pude
para que alguém a fosse retirar
ouviram-me e chegaram
estenderam-na sobre as ervas
parecia divina
tentaram salvá-la sem qualquer resultado…
Chamaram o padre e quando este chegou
não a benzeu nem rezou orações
apenas correu para o seu corpo inerte
lançou-se sobre ele
e cobriu-o com o seu desespero
e todos ouviram a sua voz rouca
sair em golfadas do íntimo da dor
e dizer ininterruptamente
“perdoa-me, perdoa-me”.
António Costa 12/12/2010