Livros
- ele há palavras que têm o talento raro de contar histórias (2012) -
coautoria de Isidoro Augusto (edições Modus)
- O SILÊNCIO HABITADO (2013) - coautoria de Isidoro Augusto (edições Modus)
- A MULHER QUE QUERIA SER VELHA, Rumoresdenuvens edições, 2013
- Marduke e os fantoches de Aurora, Chiado Editores, 2014
- padecimentos de uma virgem, 2015
- Parem de respirar, quero dormir!, Chiado Editores, 2015
- Na perspetiva da lua, 2016.
- O PESCADOR DE MURMÚRIOS, 2018.
- o amor é o ouvido no joelho da esperança, antónio micelar, 2022.
A MULHER QUE QUERIA SER VELHA
Este texto tem, como muitas outras coisas boas da minha existência, origem na minha avó, que cuidou de mim enquanto fui criança. Quando nasci ela já era velha, não idosa, porque não gosto da palavra, era mesmo velha. Tinha iniciado as peripécias da vida antes do final do século XIX e aproximava-se dos setenta anos. Mas não arrastava o tempo, pairava sobre ele.
Chamava-se Aurora e, tal como o nome indica, era o começo da claridade, o despertar da luz, o início da viagem do sol pelo redondo do céu. Embora não fosse professora, ensinara a ler e a escrever muitas das pessoas da vizinhança. E contava histórias. Um dia contou-me uma que me entrou mais pelos olhos do que pelos ouvidos e foi diretamente dançar na minha imaginação.
Um homem, muito orgulhoso e rico, decidiu passar por um caminho onde estava um boneco de alcatrão. Podia facilmente contorná-lo, mas decidiu que tinha de ser o boneco a afastar-se para lhe dar passagem. Como este não o podia fazer, porque era peganhento e estava preso à terra, o homem zangou-se e agrediu-o para o afugentar. Porém, à medida que o espancava ia ficando cada vez mais preso na matéria viscosa: primeiro a mão direita, depois a esquerda, a seguir os pés… Ao perceber que não podia ganhar a luta tentou libertar-se, mas quanto mais o fazia mais preso ficava. Chegou o momento em que já ninguém conseguia distingui-lo do boneco.
Fiquei o resto do dia em que vi a história a pensar nela. De noite, continuei a ruminá-la nos sonhos.
Na manhã seguinte, o mundo estava diferente. Eu sabia que se odiasse muito as coisas podia transformar-me nelas. Por isso quando olhei para as nuvens, que antes me pareciam ameaçadoras, vi palácios e fadas.
Imaginei também que todas as mulheres do mundo queriam ser velhas, para ficarem como a minha avó. Depois percebi que ninguém queria ser velho por causa da proximidade da morte, mas tranquilizei-me, pois tive a certeza de que as pessoas estavam enganadas e de que a minha avó era imortal, como a Senhora dos Remédios, que vivia numa capela ali próxima e que já tinha dois mil anos. Permanecia sempre quieta, como um boneco, mas viva, porque era imortal.
De facto, escrevi este livro para encontrar uma pessoa com uma razão muito forte para desejar tornar-se mais velha. E tinha de ser uma mulher.